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Censura não se impõe só na ditadura, diz autora de livro sobre vetos na TV

'Herói Mutilado' narra jornada de Roque Santeiro na Globo e agruras com o controle dos militares

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São Paulo

À primeira vista, o livro recém-lançado “Herói Mutilado”, da jornalista Laura Mattos, está circunscrito a três episódios do passado do país, todos eles ligados a Dias Gomes, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira morto há duas décadas. 

O primeiro é a proibição pela censura da peça “O Berço do Herói”, em 1965, um ano depois do golpe militar. 

Uma década depois, o segundo momento é o veto a “Roque Santeiro”, novela de Dias Gomes desenvolvida a partir da trama central de “O Berço”. O país vivia a transição dos “anos de chumbo” para a abertura “lenta, gradual e segura”. 

O terceiro episódio se dá em 1985. Enfim, entra no ar “Roque Santeiro”, novela sobre um povoado que cultua o mito de um falso herói. Eram tempos da chamada Nova República, e a produção foi liberada, mas os censores continuavam a impor limites à TV. 

Sinhozinho Malta, o personagem de Lima Duarte, poderia perguntar, chacoalhando o relógio e as pulseiras de ouro: “Estamos falando do passado. Tô certo ou tô errado?”. Certo e errado, Sinhozinho. 

Com base em cerca de 2.000 páginas de documentos, além do diário pessoal de Dias Gomes, de entrevistas e de publicações da época, a autora reconstitui essas três passagens para mostrar a atuação dos órgãos de censura ao longo de três décadas. Mas ela também recorre ao passado para iluminar o presente. 

Repórter e colunista da Folha, Mattos começou a pesquisar a obra do baiano Alfredo de Freitas Dias Gomes há oito anos. Em um mestrado na USP, entre 2014 e 2016, o projeto ganhou profundidade. 

“Em 2011, eu me sentia estudando a história, o passado. Agora vejo como os dias de hoje começam a ficar semelhantes com o que havia naquela época. O livro se tornou atual, infelizmente”, diz. 

Mattos se refere a situações como a da Caixa Econômica Federal, órgão ligado ao governo, para ilustrar essa ligação entre passado e presente. 

Reportagem recente da Folha mostrou que o banco criou um sistema de censura prévia a projetos culturais realizados em seus espaços. Funcionários disseram que a Caixa analisa o posicionamento 
político dos criadores nas redes sociais antes de decidir pela aprovação dos projetos.

“A censura está instalada no Brasil. Professores não podem citar Karl Marx nas aulas de filosofia com medo de represálias dos pais dos alunos. Os responsáveis pelas aulas de sexualidade estão apavorados”, afirma.

Ao longo de “Herói Mutilado”, Mattos mostra que a censura não se impõe só em períodos ditatoriais e que ela é suprapartidária, ou seja, cultivada tanto pela direita quanto pela esquerda.

Esses aspectos ficam mais nítidos no terceiro bloco, quando o livro aborda a exibição de “Roque Santeiro”, um dos maiores sucessos da história da TV brasileira. 

Membros do governo de José Sarney e mesmo os artistas celebravam a telenovela como um marco do fim da censura. Não era bem assim. Censores proibiram, por exemplo, menções à teologia da libertação, movimento católico muito influenciado pelo marxismo. 

A estrutura voltada para a censura se manteve em funcionamento ao longo dos primeiros anos da Nova República. Só foi desmontada com a Constituição de 1988. 

“A novela, que se tornou um símbolo da abertura democrática, explodiu de audiência. Houve um cuidado 
para não romper com esse mito da liberdade. Por que estragar a festa?”, questiona.

Mitos caem ou balançam ao longo de “Herói Mutilado”. A dramaturga Janete Clair (1925-1983) costuma ser vista como alienada, distante do engajamento da obra do marido, Dias Gomes. Ela foi, contudo, acompanhada muito de perto pelo SNI, o Serviço Nacional de Informações. Num dos dossiês do órgão, Clair é descrita como “comunista notória”. 

Tampouco para em pé a tese de que a TV Globo era uma forte aliada da ditadura militar. Essa é uma “visão simplista”, de acordo com Mattos. 

Nenhum ramo da indústria cultural se fortaleceu tanto durante o regime dos generais como a TV. Nesse sentido, a Globo se beneficiou bastante. 

Por outro lado, o livro revela diversos momentos de desgaste na relação entre a ditadura e a cúpula da emissora. 

Quando foi oficializada a decisão do governo de vetar “Roque Santeiro” em 1975, 36 capítulos da novela já tinham sido gravados e editados. Irritado, o dono da Globo, Roberto Marinho, escreveu um editorial contra a censura, que foi lido por Cid Moreira no Jornal Nacional. 

O livro demonstra, aliás, como as novelas se tornaram a “principal ponte de uma confluência paradoxal de interesses dos militares e do Partido Comunista”. 

Essas produções absorveram as intenções da esquerda e, simultaneamente, reforçavam a integração nacional buscada pelos militares.

Como escreve Mattos, formou-se “um triângulo amoroso de alta voltagem, com alianças fluidas, em uma relação frequentemente tensa”.

Com lançamento no dia 22, em São Paulo, o volume integra a coleção Arquivos da Repressão, coordenada pela historiadora Heloisa Starling.

Herói Mutilado - Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura

  • Quando Lançamento: ter. (22), às 19h, na Livraria da Vila (al. Lorena, 1.731, São Paulo)
  • Preço R$ 94,90 (456 págs.)
  • Autor Laura Mattos
  • Editora Companhia das Letras
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