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Mestre do 'terrir' encontra gênio dos filmes B em curta com colírio alucinógeno

Novo filme de Ivan Cardoso é protagonizado pelo americano Roger Corman

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Rio de Janeiro

O americano Roger Corman avisa que não é preciso ter medo e aplica as doses alucinógenas nos olhos do brasileiro Ivan Cardoso. Duas gotas e 24 minutos de uma vertigem de imagens de velhos filmes, círculos e formas geométricas, ao som de Os Incríveis e Bill Haley.

Os olhos de Glauber Rocha lançam raios-x. Como relâmpagos, ressurgem outros criadores na memória visual incontrolável de Cardoso —Jean-Luc Godard, os poetas Haroldo e Augusto de Campos, Zé do Caixão e Hélio Oiticica. O delírio integra o curta inédito “O Colírio do Corman”, de Ivan Cardoso, 67, conhecido como mestre do “terrir”, o terror temperado com humor.

A presença de Roger Corman tem peso simbólico. Aos 93 anos, ele é uma referência mundial dos filmes de terror e um mito do cinema independente americano. 

homem pinga colírio no olho de outro homem
O produtor americano Roger Corman pinga colírio no cineasta brasileiro Ivan Cardoso - Ivan Cardoso/Divulgação

Dotado de sopro de mago, o produtor de mais de 400 filmes apoiou logo cedo as carreiras de Monte Hellman, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, Francis Ford Coppola e James Cameron. Como diretor, fez valer o faro apurado ao escalar Jack Nicholson em “A Loja dos Horrores”, de 1960, e Robert De Niro em “Os Cinco de Chicago”, de 1970.

Cardoso conheceu a obra do americano na adolescência. O carioca lembra de ter visto na TV e numa sessão da meia-noite o longa “O Homem dos Olhos de Raio-X”, lançado por Corman em 1963, que é citado nesse seu novo curta. Em 1994, numa edição do Festival do Rio, os mestres do terror e do terrir ficaram amigos. 

“Ele se amarrou em mim por causa de ‘As Sete Vampiras’ [seu longa de 1986] e do meu Porsche conversível Super 90. Ele tinha um igual. E achou o meu fantástico”, conta o diretor de “Nosferato no Brasil” e “O Segredo da Múmia”.

O produtor americano Roger Corman - Ivan Cardoso/Divulgação

Ivan Cardoso habita a sua própria obra. As janelas de seu apartamento são vedadas por espelhos dourados, que aplacam a luz solar e anulam o mundo externo. Ao contrário dos vampiros de filmes B, seu corpo é refletido nesses espelhos. Uma infiltração ameaça o acervo de 75 mil negativos de um dos fotógrafos centrais da contracultura brasileira.

O espírito barroco não dá refresco em seu quarto atulhado de mostruários de centenas de óculos “ivanovision”, as lentes “para não ver”. O apartamento em Copacabana remete à experiência de andar num trem fantasma. 

Corman se sentou entre múmias, caveiras, vampiros, máscaras de almas penadas e pratos com aranhas artificiais. O cineasta americano tomou um gim Beefeater, sorvido até 1h da manhã, e pediu para ver o curta-metragem. Entusiasmou-se com a linguagem experimental e a articulação de imagens reais e abstratas.

“O Colírio do Corman” exigiu um trabalho de dez anos. Dos círculos e formas geométricas às interferências em antigos copiões, Ivan Cardoso criou manualmente os fotogramas. “Fiz cinema com a tesoura, a régua e as mãos.” 

Em 2014, no Copacabana Palace, ele encenou com Corman a pingada de colírio. Mas aquela não seria a gota d’água. Na volta do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, o Fantaspoa, em 6 de junho deste ano, Corman visitou sua casa e lhe concedeu uma entrevista que pode servir de extra ou se integrar a outro filme.

No Brasil, a precária engenharia financeira de um longa está distante da realidade das produções de Corman. Há mais de uma década sem apoio, Cardoso se considera censurado pela Agência Nacional do Cinema, a Ancine.

“Eu vim do underground e voltei pro underground”, afirma. “Fernando Henrique entregou a cultura pro PT. No governo do PT, não me deram nada porque sou primo do Fernando Henrique. Eu sou brizolista, na verdade.”

Apesar do sentimento de exclusão, Cardoso defende a sobrevivência da Ancine: “Senão, todos vão fazer filmes experimentais”. Numa gaveta, encontra o manifesto “Nós”, do grupo do documentarista soviético Dziga Vertov. O texto de 1922 é lido em voz alta: “A morte da ‘cinematografia’ é indispensável para que a arte cinematográfica possa sobreviver”.

“Por que eu vou defender o meu algoz?”, provoca. “A Ancine dá dinheiro pra Globo. Isso é uma loucura. Eu não recebo dinheiro, mas a Globo recebe.” Ele não aceita o nicho de marginal. “Eu sou pop. Não sou Júlio Bressane, embora tenha aprendido muito a fazer cinema com ele. Faço cinema pra ganhar dinheiro. Fiz esse curta porque fui censurado.”

Expoente do chamado ciclo do Super 8, Cardoso não vê desconforto no retorno aos curtas. “Todo cineasta brasileiro, depois que emplaca, só faz longa. Parece um negócio do tamanho do pau. Não tenho preconceito. Menos é mais no cinema brasileiro.”

 

O diretor reclama da falta de solidariedade dos colegas e, em pé, imita Glauber entre sorrisos: “Todos me traíram!”. Avança mais: “Criou-se uma aura de que os artistas são bonzinhos. Artista não é bonzinho, não. Artista é filho da puta que nem eu. Oscar Wilde falava, desconfie dos artistas educados. Todo mundo agora quer salvar a Amazônia e o Brasil”.

A insistência de amigos não o fez entrar numa sala para ver “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. 

“O cinema brasileiro é péssimo de título. É anticinematográfico”, critica. “‘Bacurau’, cara? O que é bacurau? Corman não produz ‘Bacurau’. Nem William Castle”, diz, citando o produtor de “Trama Diabólica” e “O Bebê de Rosemary”.

A instabilidade do país inviabiliza uma coprodução com Roger Corman, que reside em Los Angeles. “O Brasil é um país condenado ao terror”, crava. 

“O Colírio do Corman” deve ser projetado em festivais e galerias. Os espectadores serão convidados a pingar um colírio antes da exibição. A trajetória do cineasta brasileiro será repassada neste ano pelo documentário “Ivan, o Terrível”, de Mario Abbade. 

O homenageado revela estar em paz desde que ganhou um presente de Abbade, em 31 de dezembro de 2018. “Agora sou um vampiro com caixão. Isso me deu uma tranquilidade muito grande”, diz Cardoso, que virou o ano ao lado do ataúde, enquanto seu cachorro latia para os fogos de Copacabana.


Roger Corman Nascido em Detroit, em 1926, é referência no cinema independente americano. Entre os longas mais conhecidos que ele dirigiu estão ‘A Loja dos Horrores’ e ‘O Homem dos Olhos de Raio-X’ 

Ivan Cardoso Nasceu no Rio de Janeiro, em 1952. É mais conhecido por filmes que mesclam o terror e a comédia, caso de ‘O Segredo da Múmia’, ‘As Sete Vampiras’ e ‘O Ecorpião Escarlate’

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