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Livros

Morte de Harold Bloom nos faz pensar em como preencher o vazio

Crítico sempre dava início às aulas com uma introdução que unia cotidiano e literatura

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David G. Molina

Fui aluno de Harold Bloom, que morreu nesta segunda-feira (14), na Universidade Yale, em New Haven, por dois anos, entre 2013 e 2015, tendo completado com ele um curso sobre literatura americana, em que passamos por autores como Walt Whitman, Emily Dickinson, Herman Melville, Wallace Stevens e Hart Crane, e um outro exclusivamente dedicado a Shakespeare.

Como a procura por seus cursos era intensa, todos os alunos que postulavam uma vaga deveriam escrever, no decorrer de uma hora, um pequeno ensaio sobre o tema da disciplina, o que seria utilizado para selecionar os 12 finalistas. Não lembro bem o que escrevi, mas ao final do dia recebi uma mensagem por email de um de seus assistentes —a tecnologia não era o seu forte— dizendo que eu havia passado na seleção.

Apesar de as primeiras aulas terem sido realizadas em uma sala de aula comum, no porão do prédio 451 da rua College, que contava com uma “távola redonda” de madeira e fácil acesso ao estacionamento por causa de suas dificuldades de locomoção, nossos encontros foram rapidamente deslocados para a casa de Bloom na rua Linden. 

Ali o ritual era sempre o mesmo. Chegávamos (muitas vezes debaixo de neve), deixávamos o material na sala e caminhávamos até a cozinha, onde preparávamos um chá. Bloom normalmente estava sentado, trabalhando na cabeceira da mesa de jantar, e só se virava em direção à sala quando a aula fosse começar.

Bloom quase sempre dava início à aula com uma introdução que parecia unir cotidiano e literatura. No alto de seus 82 anos, utilizava sua enorme experiência para aproximar a literatura da vida (ou seria a vida da literatura?). Em seguida, pedia que lêssemos passagens do livro em voz alta, ou as recitava ele mesmo, de memória com olhos fechados, e ensinava por meio de perguntas que carregavam uma complexidade psicológica que parecia estar muito além do que se poderia esperar de uma aula de literatura “normal”.

Lembro com clareza de sua análise da primeira cena do quarto ato de “Rei Lear”, o encontro entre Edgar —disfarçado como o velho pobre Tom— e Gloucester, seu pai, já cego. Após lermos a passagem juntos, Bloom iniciou a usual investida de perguntas: por que Edgar não revela sua verdadeira identidade para o pai? A revelação da identidade do filho ocorre mais adiante na peça: por que Shakespeare nunca nos mostra essa cena? E mais: por que Shakespeare apenas descreve a colossal cena de reconciliação entre Lear e Gloucester?

Com hesitação, respondemos que esses momentos emocionantes talvez fossem mais eficazes por estarem ausentes do texto. Mas a resposta de Bloom foi ainda mais veemente: não há outra alternativa para expressar esta força emocional senão a elipse. Para Bloom, “Rei Lear” é “um triunfo em deixar coisas de fora” (“a triumph of leaving things out”). As perguntas que levaram a análise do trecho a seu ponto final foram as seguintes: como Shakespeare gostaria que compreendêssemos a elipse? De que forma ele pede de nós que recheemos o espaço vazio?

É essa a pergunta que Bloom nos faz também hoje, quando nos deixa pensando em preencher o vazio de sua ausência, e se faz ele mesmo literatura, dividindo o espaço na prateleira com aquele paradigma de matéria literária que foi, ao longo da vida, seu duplo assumido: o gregário Sir John Falstaff.

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