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Narrativa de 'Com Armas Sonolentas' é autêntica, mesmo não sendo verossímil

Em romance de Carola Saavedra, quatro mulheres de uma mesma família estão presas às tramas do destino

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Com Armas Sonolentas

  • Preço R$ 54,90 (272 págs)
  • Autor Carola Saavedra
  • Elenco Companhia das Letras

Em “Com Armas Sonolentas”, novo romance de Carola Saavedra, quatro mulheres de uma mesma família estão presas às tramas do destino segundo a lógica de uma fita de Moebius, isto é, uma fita cujas extremidades são coladas invertidas, transformando-a num aro cujo lado de dentro é também o de fora. 

Assim, a jovem Maike, a atriz Anna Marianni, sua mãe e bisavó se deslocam e se desencontram num mesmo plano. A narrativa do livro é como um corte longitudinal nessa fita, a exemplo da performance "Caminhando", de Lygia Clark (1964). Elas têm a sensação de estar andando na mesma direção, mas a cada corte na fita, ou a cada história, ficam mais distantes.

A escritora Carola Saavedra
A escritora Carola Saavedra - Carine Wallauer Ferreira/Divulgação

Há duas maneiras de se aproximar do livro. A primeira, em chave realista. Como o percurso das personagens resvala em lugares comuns (a atriz Anna Marianni como a mulher bonita carregada por desejos masculinos; a jovem alemã Maike que não sabe nada do Brasil mas vem parar no Rio de Janeiro em pleno Carnaval; a mãe de Anna, empregada doméstica numa residência de classe alta em Copacabana estuprada pelo filho dos patrões) e há uma boa quantidade de passagens inverossímeis (capivaras que falam, encontros com a morte, saraus declamados em nheengatu), a leitura realista se frustra.

Uma segunda possibilidade nos leva a tratar o romance como fantástico e onírico. O próprio título, "Com Armas Sonolentas", é uma citação de Sor Juana Inés de La Cruz, que creditava à figura feminina o poder de lutar no mundo real com outras armas além das concretas, como as do sonho e da intuição.

Mas esta leitura é apenas um desvio da primeira, uma vez que nos leva a um jogo infrutífero de interpretação do que é sonho e do que é real, onde nos perdemos em considerações de verossimilhança sobre esta ou aquela passagem.

Não parece residir aí a potência do livro de Saavedra. A narrativa é autêntica, mesmo não sendo verossímil. É verdadeira, ainda que construída sobre clichês e amarrações pouco sutis. Mas como isso é possível? Eis o mistério.

A personagem que melhor questiona a lógica do real no romance é a bisavó indígena, possivelmente descendente de índios mapuche, do sul do Chile, e desterrada no interior do Brasil, alguém que “se tivesse continuado no meio do mato, entenderia melhor as coisas”.

A força do livro se deve à presença magnética dessa bisavó. Sua crença em si galvaniza toda a narrativa.

Em meio às dúvidas de todas as demais personagens, a bisavó é toda certeza. Isso mesmo quando, depois de morta, atravessa o tempo e o espaço acompanhada por uma capivara, a “mensageira dos mundos”, numa viagem astral que lembra o delírio de Brás Cubas.

Por meio dela, Saavedra explora linhas de força ao mesmo tempo contemporâneas e ancestrais como a divisão conflituosa entre indivíduo e meio social (“saber é muito diferente de ter razão”), entre naturalidade e migração (“veja quanto custa renegar a sítio natal”), entre cultura e natureza (“não, nada é natural na natureza”).

Não à toa o corpo físico das personagens femininas têm dimensão fundamental no livro. É neles que essas tensões se revelam, seja em cenas de sexo hétero e homossexual, nas experiências de gravidez, puerpério e maternidade, ou nos efeitos causados pelos delírios e devaneios.

Saavedra consegue se inserir numa tradição rara e seleta no Brasil, onde já figuram textos de Clarice Lispector (como “Amor” e “A Paixão Segundo G.H.”) e Guimarães Rosa (“Meu Tio o Iauaretê” e “A Terceira Margem do Rio”). Não em termos de estilo, ainda bem, mas ao deslocar o sujeito racional ocidental de sua posição de centralidade na narrativa ficcional. 

Roberto Taddei é escritor e coordenador da pós-graduação Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz 

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