A editora Temporal vem reeditando as peças de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianinha, muitas delas escritas em plena ditadura militar, mas, ainda hoje, bastante atuais. Elas falam sobre ditadores, como “Papa Highirte”; sobre convicções políticas e pessoais, como “Rasga Coração”; e ainda sobre a censura nos meios de comunicação, enredo de “A Longa Noite de Cristal”, recém-publicada.
A obra conta a história de um jornalista (Cristal) diante de um dilema: relatar os fatos assim como os viu ou omiti-los para não prejudicar o programa de telejornal para o qual trabalha e que vem sendo ameaçado pelo governo.
Na peça, escrita em 1969, a notícia que deveria ter sido ocultada por Cristal era sobre uma grávida que, depois de ser atendida e mandada de volta para casa por um médico em um hospital público, dá à luz na rua, contando com o apoio apenas do marido.
Meio século se passou e esse tipo de notícia, hoje, por aqui, parece já não causar nem espanto nem mesmo comoção, se é que ainda interessaria como notícia. Na época dos militares, contudo, o Brasil precisava ser visto como “um país que vai pra frente”, como cantava em alto e bom som, para os que comandavam a nação, a banda de rock Os Incríveis.
Desse modo, as opiniões críticas deveriam ser evitadas para não prejudicar a imagem idílica de um país afundado em problemas. O que interessava publicar, segundo a peça, eram notícias como: “Um cintinho com fivela e ilhoses, para usar na testa, é a nova bossa das meninas de Ipanema”, que Cristal divulga.
Se no final dos anos 1960 a informação de uma parturiente que dá à luz na rua causava mal-estar, hoje talvez outra notícia viesse a chamar mais a atenção, justamente uma proferida pela jornalista companheira de bancada de Cristal: “‘A poluição da atmosfera, se não for combatida eficazmente, poderá causar a morte global da humanidade em 40 anos’, declarou U Thant no seu relatório à Assembleia Geral da ONU”.
O título da peça do dramaturgo carioca remete a um fato histórico bastante conhecido, a Noite dos Cristais, que ocorreu em 1938, quando, na Alemanha e na Áustria, prédios, sinagogas e lojas de judeus foram destruídos pelos partidários do nazismo. A palavra “cristais” refere-se aos vidros que se acumularam nas ruas das cidades no dia seguinte.
O protagonista da peça, o carioca Celso Gagliano, é apelidado de Cristal em razão do timbre de sua voz. Se na Europa foi a ira dos nazistas que fez em pedaços as vidraças judias e espalhou cristais pelas ruas, no Brasil coube à repressão das autoridades então no poder jogar Cristal na calçada e destruir sua carreira. O jornalista, porém, consegue retomar a profissão num “acanhado estúdio de rádio”.
Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo” (Iluminuras)
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