Descrição de chapéu

Peter Handke quis eliminar as ficções inúteis e ficar apenas com a linguagem

Dramaturgo premiado com o Nobel faz crítica birrenta de Brecht e crê não ser necessário inventar uma história

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Samir Signeu

Em 1966, na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Peter Handke, um jovem escritor austríaco de 24 anos, de origem eslovena, ao participar da reunião anual do Grupo 47, rompia com uma regra pré-estabelecida que determinava que todas as manifestações públicas deveriam ser feitas apenas através de um texto a ser lido.

Peter Handke tomou a palavra de improviso para falar da “incapacidade da descrição”, que ele considerava “impotente e monótona”. Ele afirmava, então, ser a favor da descrição, mas não daquela que se proclamava naqueles dias na Alemanha do novo realismo.

Handke é, de certa forma, um dos protagonistas dos conturbados anos 1960, que se caracteriza pela revolução cultural, que tinha como ator principal o jovem que não aceitava mais os valores e as regras que a sociedade e o sistema lhe impunham sobre o que fazer, o que dizer, como agir e aonde ir.

É nessa época conturbada e agitada, tomada de rebeldias, experimentações e irreverências que o nome de Peter Handke, filho da Segunda Guerra, surge para a literatura e dramaturgia mundiais. O apego dele com as palavras e as línguas se manifestou desde muito cedo. Mais tarde, as utilizações das palavras como veículo de expressão da memória de experiências vividas e de reflexão passariam a ser sua temática recorrente.

Em cada uma de suas obras —poesia, peças de teatro, romances, ensaios, roteiros cinematográficos e traduções— a palavra assume sempre uma posição de destaque; única tradução para a sua percepção do mundo. Ele se torna representante da literatura experimental da linguagem, que mostrava que a literatura é feita com a linguagem. Mais tarde ele retornaria para a narrativa tradicional.

Handke dizia que a realidade da literatura o tornou atento e crítico da verdadeira realidade e que ela o iluminou sobre ele mesmo e sobre o que se passava em torno dele. A obra literária, sob seu ponto de vista, deveria ser alguma coisa que o modificasse, o transformasse, mesmo que levemente, tornando-o consciente de uma possibilidade da realidade ainda não pensada ou consciente; uma nova possibilidade de ver, falar, pensar e existir. Se isso era possível, também seria possível mudar os outros graças a sua literatura.

Peter Handke cita Kleist, Flaubert, Dostoiévski, Kafka, Faulkner e Robbe-Grillet como os autores que mudaram a sua consciência do mundo. Para ele, as possibilidades conhecidas de descrever o mundo não eram mais suficientes, tanto como autor como leitor. Ele não podia mais suportar nenhuma história, pois toda história o distraía; ela o fazia se esquecer dele mesmo com sua ficção; ela o fazia esquecer sua situação; ela o tornava alienado e distante do mundo.

Para ele, de maneira geral, o progresso da literatura parecia consistir numa eliminação progressiva das ficções inúteis e que, portanto, tratava-se mais de comunicar as experiências, linguísticas ou não linguísticas, e que por isso não era mais necessário e útil inventar uma história.

Como autor, o que lhe interessa é mostrar —não dominar– a sua realidade. Ele preferia deixar a exploração e o domínio da realidade para as ciências que, graças aos seus dados e métodos, podiam devolver um novo material à realidade. Mas Handke estava em busca dos métodos e modelos para uma literatura que amanhã (ou depois de amanhã) seria qualificada e denominada de “realista”.

Peter Handke dizia que não podia ser um autor engajado, pois não conhecia nenhuma alternativa política para aquilo que existia, ali ou em outro lugar; pois o único compromisso possível para o escritor é a literatura. Ele se perguntava se o engajamento seria uma atitude voluntária ou involuntária. Qual seria o escritor que não era engajado? E também dizia que aquele que se engajava se preocupava em alcançar seu objetivo e que o engajamento não era um estado passivo, mas uma posição.

Para ele, o engajamento seria determinado de maneira material, enquanto a literatura o seria de maneira formal. E ao adaptar seu engajamento à forma literária, o escritor acreditava se liberar do conflito entre querer fazer literatura ou bem se engajar.

Dessa forma, ele fazia uma crítica birrenta a Bertolt Brecht, apesar de dizer que Brecht era um escritor que o fez pensar e que contribuiu na sua educação, já que ele havia organizado os esquemas funcionais da realidade num modelo de reflexão feito de oposições. Para Peter Handke era historicamente falso afirmar que a atitude dos espectadores pudesse ser mudada apenas em função das atitudes dos atores.

Handke se voltou contra uma orientação crítica direta da literatura e a comparou com sua abordagem crítica da linguagem.

Samir Signeu, doutor em artes cênicas pela USP,  é professor da Recriarte, Teen Broadway e ECA-USP.  Publicou os livros "Peter Handke: Peças Faladas" e "Thomas Bernhard, o Fazedor de Teatro" (Perspectiva).

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