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Peter Handke, vencedor do Nobel, terá livro novo no Brasil; leia trecho

'Ensaio Sobre o Maníaco dos Cogumelos' será publicado no país em novembro

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São Paulo

Peter Handke, que recebeu o Nobel de Literatura nesta quinta-feira (10), terá um livro novo publicado no Brasil em novembro.

"Ensaio Sobre o Maníaco dos Cogumelos", publicado originalmente em 2013, vai sair no país pela editora Estação Liberdade. 

No trecho abaixo, é possível ter contato um pouco de contato com a prosa do austríaco e entender o que o júri do Nobel quis dizer ao definir a literatura de Handke como uma "extraordinária atenção às paisagens, o que fez do cinema e da pintura duas de suas maiores fontes de inspiração".

Leia abaixo.​

Peter Handke, que venceu o Nobel de Literatura nesta quinta (10)
Peter Handke, que venceu o Nobel de Literatura nesta quinta (10) - Christian Hartmann/Reuters

“Está ficando sério de novo!”, disse a mim mesmo, sem querer, há pouco, antes de me encaminhar aqui para a escrivaninha onde agora me sento com a intenção de obter uma certa —ou, mais ainda, uma incerta —clareza sobre a história de meu amigo desaparecido, o maníaco dos cogumelos. E também sem querer disse a mim mesmo: “Não pode ser! Que importância haveria em começar e deitar por escrito uma coisa que, por si e em si, pouco ou nada encerra de relevante para o mundo; uma história para a qual, durante a preparação deste ensaio, me ocorreu o título de um filme italiano de mais de uma década, protagonizado por Ugo Tognazzi: A tragédia de um homem ridículo —não o filme ele próprio, mas apenas o título.
 
Além disso a história de meu velho amigo nem mesmo é uma tragédia, e se ele foi ou é ridículo também não está muito claro e fica cada vez menos; e, mais uma vez sem querer, digo e escrevo agora: “Que continue assim!” 
 
Antes de chegar aqui à escrivaninha, me ocorreu mais um filme. Nesse caso não foi, contudo, o título, mas uma das cenas iniciais, se não a própria cena do início. Tratava-se mais uma vez de um faroeste, de —adivinhem!— John Ford, em que James Stewart aparece no início da história como o famoso xerife Wyatt Earp, ao que tudo indica muito, muito tempo depois de suas já lendárias aventuras de Tombstone, sentado de maneira preguiçosa e sonhadora, como só James Stewart sabe fazer, na varanda de sua delegacia banhada em sol, texano?, apenas deixando o tempo passar, ao que parece tão tranquila quanto decididamente, com a aba do chapéu cobrindo parte dos olhos, de maneira tanto invejável quanto contagiante. Então —ou não seria uma história do Velho Oeste— a partida para a nova aventura, no início contra a vontade do personagem, se me lembro bem, atraído apenas pelo dinheiro, rumo ao norte, não ao oeste. Na sequência, no entanto, e sobretudo no fim da história, o que aparece é a intervenção óbvia, a atenção suave, a prestativa e silenciosa presença de espírito, que novamente só James Stewart soube irradiar e continua irradiando. Não apenas Two Rode Together, conforme o título do filme, sendo Richard Widmark o segundo cavaleiro, senão mais pessoas cavalgavam juntas ao fim, muitas, se não (quase) todas. Por que razão, antes da partida para a escrivaninha, fui me lembrar justamente do início desse filme, do assim chamado guardião da ordem tão contagiantemente preguiçoso, que não levanta um dedo, com as pernas esticadas, as botas calçadas, sim, o xerife que descerra um sorriso libertador?
 
Eu mesmo estava sentado com as pernas esticadas, botas calçadas. Não era contudo numa varanda, e tampouco no extremo sul, mas no sombrio norte, distante do sol e do Sol, as pernas sobre o peitoril da janela de uma casa com um século de existência, paredes de quase um metro de espessura, do lado de fora da qual se via o nevoeiro da chuva do fim do outono, e um vento frio soprava dos faiais já transparentes do planalto através das fendas da janela, e as botas eram botas de borracha, sem as quais mal se podia andar, especialmente campo ou floresta adentro, e descalcei essas botas quando me pus a caminho da escrivaninha, deixando-as lá fora, à entrada da casa, com uma coisa que já se chamou “saca-botas”, no meu caso um troço arcaico de ferro pesado, na forma de um enorme caracol, cujo par de antenas de metal me aplainava e alavancava as botas dos calcanhares, e então, com alguns passos e pela próxima porta, me encaminhei para a construção contígua, o pequeno armazém, o “anexo”, como o chamo, até chegar aqui à mesa e começar a escrever.
 
Como isso? Os poucos passos até a escrivaninha um “caminho”? Um “encaminhar-se”? Uma “partida”? Foi o que me pareceram. Foi assim que os vivenciei. Foi assim. E nesse meio-tempo já escurece novembramente lá abaixo na planície que, do pé do planalto, em cujo íngreme canto me encontro, se estende ainda mais ao norte, e a lâmpada da escrivaninha está acesa. “Tem mesmo de ficar sério.”
 
Meu amigo se tornara um maníaco dos cogumelos desde muito cedo, embora num sentido diferente dos tempos futuros ou últimos. Só então, com a idade chegando, surgiu uma história sobre ele como maníaco. As histórias sobre maníacos por cogumelos são normalmente ou mesmo invariavelmente escritas pelos próprios maníacos, que falam de si como “caçadores” ou, em todo caso, como investigadores, coletores ou naturalistas. O fato de não apenas haver uma bibliografia sobre cogumelos, os livros sobre cogumelos, mas uma literatura em que um dos cogumelos narra sua própria existência, parece ter sido o caso somente nos últimos tempos, talvez só depois das duas guerras mundiais do século passado. Na literatura mundial do século 19 os cogumelos não aparecem quase em nenhum livro, e se aparecem é pouco, só de passagem, e sem relação com o devido herói, ficam sozinhos, como nos russos, em Dostoiévski, Tchékhov.

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