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'Realidade pode ser captada por muitos pontos de vista', diz ganhadora do Nobel

Olga Tokarczuk começou carreira trabalhando com psicologia no início dos anos 1980 na Polônia, 'uma época realmente sombria'

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Nova York

A polonesa Olga Tokarczuk, junto com o austríaco Peter Handke, foi anunciada nesta quinta-feira (10) como vencedora do prêmio Nobel de Literatura. 

Neste ano, dois prêmios foram concedidos porque a Academia Sueca, responsável pela escolha, não entregou a medalha no ano passado por discordâncias internas do júri.

Laureada com a medalha correspondente a 2018, Tokarczuk era uma das mais cotadas pelas bolsas de apostas. Romancista, ensaísta, roteirista e celebridade literária em seu país, a polonesa nasceu em 1962 e é autora de “Flights”, livro pelo qual ficou conhecida mundialmente após ganhar a versão internacional do Man Booker Prize em 2018, prêmio para o melhor trabalho traduzido para o inglês e publicado no Reino Unido.

"Sobre os Ossos dos Mortos", de Tokarczuk, será lançado no Brasil pela editora Todavia em novembro.

Olga Tokarczuk conversou com John Freeman, escritor, crítico literário e editor do site Literary Hub —onde a entrevista, até então inédita em português, foi originalmente publicada.

 
'Flights' é cheio de histórias que parecem recolhidas e selecionadas a dedo, além de inventadas e relatadas. Muitos dos acontecimentos neste livro são baseados em experiências reais? A primeira coisa é que quando você escreve um romance-constelação como este, um romance construído a partir de pequenos fragmentos, é preciso ter algo que seja estável. Entendi desde o começo que precisava ser uma narradora muito forte. E é claro que criei essa narradora a partir de minhas próprias perspectivas, meus próprios pontos de vista, minhas próprias qualidades e assim por diante. Mas assegurei que essa narradora fosse tão material que há um trecho no início do livro em que mostro seus exames de sangue. Assim o leitor pode até conhecer um detalhe tão material, tão orgânico da narradora.
 
Você se recorda da primeira viagem que fez na vida? Quando eu era menina, gostava muito de explorar meu espaço. Eu fazia excursões mais curtas e mais longas, e numa delas fui ao rio Oder, que fica na minha área, a uns dois quilômetros de minha casa. E pela primeira vez na vida tive a sensação de ser uma conquistadora. Aquela foi uma experiência muito importante para mim como criança. Explorar o mundo e também torná-lo um lugar seguro e confiável, de certo modo.

Penso que as crianças de hoje não têm essa experiência, a de explorar o espaço que as cerca. Ainda me recordo do momento quando cheguei ao rio, e o rio era imenso, é claro, e mágico. Era tremendo. “Eu fiz!”, falei a mim mesma. Foi apenas uma milha, mas foi um grande passo para a humanidade! [risos]
 
Há algo no livro sobre os elementos. A água aparece a todo momento, e baleias nadam ao longo do livro. Você acha que existe algo de mítico na água? Claro que sim. A água é a metáfora de nosso inconsciente. A água é uma divisa, um símbolo da divisa que podemos atravessar. Navio, barco, é outro tipo de símbolo. Assim, atravessar a água acho que é algo que ocorre por baixo da consciência comum. A água também é plana, algo perigoso, mas algo que também é frutífero, que nos dá a energia para as plantas crescerem.

Portanto, a água contém significados intermináveis. E para mim, acho, quando descobri a água em meus mapas de infância, descobri muito cedo que a forma dos rios é igual à dos nervos humanos, das veias humanas. Este livro também é profundamente enraizado na fractalidade. Na ideia de que as coisas grandes são muito semelhantes às mais ínfimas. Portanto, vivemos no microcosmo.
 
Você estudou psicologia, e a psicologia também está presente neste livro na vida da narradora. E Jung é especialmente importante para você, conforme li. Como isso afeta sua maneira de contar histórias? Minha mãe era professora de literatura polonesa e eu, de certo modo, estava destinada a estudar literatura também. Mas a psicologia era meu interesse realmente profundo e eu me convenci a estudar psicologia. Era o início dos anos 1980 na Polônia, uma época realmente sombria. Lei marcial, lojas vazias e uma espécie de depressão total que era comum em nosso país. Comecei muito rapidamente a trabalhar com clientes, com pessoas doentes. Fui voluntária desde o início. E então fiz minha primeira descoberta tremenda: que a realidade pode ser captada por muitos pontos de vista.

Hoje, no século 21, isso talvez soe trivial, mas na época, muitos anos atrás, foi uma revolução para mim. Quer dizer que não existe algo objetivo, mas que só podemos apreender essa realidade a partir destes pontos de vista. E me recordo de um de meus primeiros clientes –era uma família, e eu trabalhava com dois irmãos e eles tinham que me contar a história de sua família. E eles produziam narrativas completamente diferentes sobre a mesma família. Falei “e então, o que isso quer dizer?” Acho que foi o primeiro passo que me levou a escrever.
 
Entretanto, apesar de incorporar tantos pontos de vista, “Flights” é muito fundamentado no corpo. Quando foi que você descobriu uma maneira de ligar isso às questões metafóricas e metafísicas da fuga e do movimento? O livro foi escrito uns 12 ou 13 anos atrás. Acho que o ponto de partida dessa ideia foi minha crise da meia-idade. Lembro de um momento assim em minha vida quando eu estava sentada na sala de espera, aguardando uma consulta médica e para fazer algum tipo de exame, de sangue ou algo assim. E então me dei conta de que eu sei muitas coisas sobre o espaço exterior, como a localização dos planetas ou a geografia do Amazonas e assim por diante, mas não sei como funciona meu fígado. Qual é a cor do meu estômago? Como minhas veias passam por baixo de minha pele. Percebi que era um desconhecimento chocante e que deve ser uma doença terrível não conhecermos nosso corpo.

Então comecei a estudar a história da anatomia. Graças a Deus que eu tinha uma bolsa de estudos em Amsterdã na época, então passei um ano estudando a história da anatomia. E um ponto muito crucial neste livro, que descobri por acaso, é que os dois grandes livros apareceram no mesmo ano, foram publicados no mesmo ano, 1574. Um deles foi o livro famoso que nos revelou como o universo foi construído e como funciona. E ao mesmo tempo foi publicado o “Atlas do Corpo Humano”, de Vesalius. Então aqueles dois microcosmos estiveram conectados naquele ponto e naquele ano particular.

Um dos anatomistas no livro, depois de dissecar esqueci se é um humano ou um animal achou tranquilizador, de certa forma, que o corpo não passa de um mecanismo. Você concorda? Não, não concordo. Esse me parece um ponto de vista bem arcaico, como no início do iluminismo, quando as pessoas começaram a pensar o mundo como uma coleção de mecanismos, brinquedos, modos. Mas penso que ainda há um mistério. Não sabemos —embora tenhamos a ciência e saibamos mais ou menos como o cérebro funciona, ainda há tantos campos completamente inexplorados. Ainda desconhecemos as respostas às perguntas maiores dos nossos tempos. Como funciona a consciência? Por que temos essa impressão de estarmos separados do resto da realidade? Por que sentimos que estamos separados uns dos outros? Sim, eu diria que a consciência ainda é algo muito obscuro.
 
Há uma cena com um personagem que está num avião com um astrofísico que estuda a matéria negra. Ele fala a um passageiro que há mais matéria negra no universo do que matéria visível. O físico olha pela janela e fala “nem sabemos por que ela está aqui”, como se o avião estivesse voando através dela. E eu me pergunto esse tipo de informação impõe a pergunta: nossa trajetória pelo universo é posicionada sobre o mistério, mas também sobre um pouco de fé? Uma fé na qualidade benigna do universo? Ou isso é ingenuidade excessiva? Não sei. Como escritora, tenho a coragem de ser —de fazer perguntas e não encontrar uma resposta, porque nesse caso eu mudaria de profissão e tentaria ser cientista. E ser escritora é uma liberdade melhor. Simplesmente perguntar e mostrar coisas estranhas. Sim, por favor reflita ao ler este livro. Simplesmente se pergunte o que está acontecendo.
 
Muitos personagens aqui são atormentados por obsessões pequenas e grandes. Isso é algo com que você se identifica? A maior obsessão que tive na vida foi ligada a "Os Livros de Jacó" ["Ksiegi Jakubowe", de sua autoria, sem tradução para o português].  Uma obsessão que durou oito anos, você consegue imaginar? Lendo apenas coisas ligadas ao século 18, sobre judeus, cultura judaica, religião, misticismo e o início do iluminismo na Europa central. Mas foi uma obsessão muito forte. Graças a Deus que sobrevivi a ela [risadas da plateia], e o resultado da obsessão foi o livro. Portanto, acredito realmente na obsessão. É algo muito positivo. Conhecemos a obsessão como algo que pode nos destruir, mas do meu ponto de vista uma obsessão é simplesmente conservar a energia focada sobre um só ponto. Pode ser doloroso, mas também é muito frutífero.
 
Essa também é uma boa descrição de orar –conservar sua energia voltada sobre um ponto. Você acredita em Deus? [pausa] Que tipo de Deus? [risos] 
 
Não estou perguntando sobre uma figura de barba comprida com toneladas de livros, raios, trovões, castigos e vergonha. Alguma espécie de força criativa? Com certeza, nesse caso sim, acredito. Mas não acredito que isso seja algo semelhante a seres humanos. Com toda certeza não. Talvez ele ou ela não entenda quando falamos dele ou dela. 
 
Como este é um livro intitulado “Flights”, quero perguntar: se estivéssemos sentados diante de um daqueles painéis gigantes de Embarques e você pudesse olhar para um painel quase interminável, qual é o nome de cidade que faria você sentir mais vontade de embarcar numa fuga? 
Hoje tenho uma casa na Polônia, na parte sul do país, que é a pequena cauda no mapa da Europa. E essa parte nunca pertenceu à Polônia historicamente. Ganhamos essa parte antes da Segunda Guerra como uma espécie de presente da [Conferência de] Ialta, porque perdemos um território enorme no leste, você sabe. Então eu vivo lá. Tenho uma casa velha ali. A casa está sendo reformada. Todos os dias ligo para meu marido e pergunto sobre o telhado, o encanamento, as janelas e essas coisas. Então eu penso –eu sonho em voltar para lá e cuidar dessas reformas. [risos] Uma direção completamente diferente!

Tradução de Clara Allain

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