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'Devemos aprofundar o debate, mas não vejo razão para mudar', diz curadora da Flip sobre Bishop

Poeta americana Elizabeth Bishop, homenageada do próximo evento, sofreu resistência de autores e editores

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São Paulo

Assim que foi encerrado o evento que anunciou o nome da próxima autora homenageada da Flip, na noite da segunda-feira (25), ninguém parecia perplexo na plateia do Itaú Cultural, em São Paulo, com a escolha da poeta americana Elizabeth Bishop.

Tirando uma pergunta ou outra sobre o fato de ser o primeiro nome estrangeiro celebrado pelo evento e a quebra de expectativa de quem esperava uma escritora negra, sobretudo Carolina Maria de Jesus, a opção por Bishop foi aplaudida —ninguém citou fato de a poeta ter sido simpática ao golpe militar de 1964 no Brasil, definindo-o como uma "revolução rápida e bonita", ou seus comentários ácidos sobre a arte brasileira, entre elas a seguinte frase: "Um bom poema de Dylan Thomas vale mais do que toda a poesia sul-americana que já vi, com a exceção, possivelmente, de Pablo Neruda".

Mas, após o anúncio, as redes sociais fervilharam com críticas à escolha da Festa Literária Internacional de Paraty. Escritores, editores e leitores criticaram o evento por ter elegido a primeira escritora estrangeira e, principalmente, alguém com as posições políticas de Bishop. Segundo essas opiniões, não era hora de homenagear um nome simpático à ditadura militar, sobretudo em tempos de flertes autoritários do governo de Jair Bolsonaro, nos quais nomes próximos ao Planalto, como o ministro Paulo Guedes, falam abertamente sobre a volta do AI-5.

"Esperava uma repercussão, mas não de forma tão agressiva", diz Fernanda Diamant, curadora da Flip. "A escolha pela Bishop tem uma ousadia que precisa ser debatida, mas não dessa maneira."

De acordo com Itamar Vieira Junior, autor de "Torto Arado", romance vencedor do prêmio Leya, a discussão não gira em torno da importância do trabalho literário de Bishop. "A homenagem da Flip soa como um equívoco", acredita. "A escritora deixou vários registros do seu olhar colonizador, sempre se supondo superior e mostrando menosprezo por nossa cultura e nossa literatura. No momento em que paira uma retórica autoritária por parte do primeiro escalão do governo, a homenagem a Bishop pode parecer um endosso político a manifestações autoritárias."

A aversão ao nome da autora homenageada chegou a gerar, entre alguns grupos, um movimento de boicote à Flip, marcada para ocorrer entre os dias 29 de julho e 2 de agosto do ano que vem. O escritor Ricardo Lisias, que tem um livro previsto para ser lançado em abril do próximo ano, publicou em suas redes sociais que negará qualquer convite feito pela programação oficial ou pelas casas parceiras do evento.

"É uma insensibilidade histórica", diz o autor. "O problema não é a Bishop ser estrangeira, mas a escolha por ela nesse momento político em que vivemos. A Flip deveria reconsiderar a decisão", completa.

Para a escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, autora do recente "Deus-dará", a opção por Bishop é um "tiro no pé" também por causa do momento político —mas não apenas por isso.

"Até hoje não houve nenhum homenageado estrangeiro. Começar com uma poeta que morou no país olhando para o Brasil e para os brasileiros com a sobranceria, a arrogância, por vezes racismo, não me pareceria um bom começo em qualquer momento", afirma. "Acresce que o governo brasileiro é uma ameaça para os criadores e para a liberdade de criação. Que a maior festa literária do pais, logo agora, escolha alguém como Bishop parece-me uma mensagem na direção totalmente oposta, quando deveria ser uma afirmação solidária com a criação no Brasil."

A opinião de Coelho reverbera em outros nomes do mercado editorial. Segundo a editora Christiane Angelotti, uma das criadoras da revista Gueto, a opção por Bishop é um "erro por si só, mas se agrava pelo contexto atual". "Ao se posicionar dessa forma, a Flip mostra um alinhamento às políticas do governo federal", acredita ela, que já decidiu não participar da programação em 2020.

A associação de Bishop ao governo de Jair Bolsonaro foi tão grande que uma notícia falsa começou a circular nas redes sociais nesta terça-feira (26), dizendo que o presidente participaria da abertura do evento literário. A fake news foi desmentida pela organização da Flip.

"Soou como provocação nestes tempos em que direita é sinônimo de barbárie, pois defende tortura, extinção e violência", opina o escritor Joca Reiners Terron. "De resto, não entro no mérito da qualidade de Bishop como poeta, de quem sou leitor dedicado."

A discussão não deixou de gerar efeitos. A editora Nós, por exemplo, avaliava publicar um ensaio biográfico sobre Elizabeth Bishop, mas desistiu após as opiniões da escritora virem à tona.

"Como editora e escritora, sempre gostei da Bishop. Mas percebi que tinha uma visão romântica", conta Simone Paulino, editora da Nós. Para ela, a Flip deveria reconsiderar a decisão de homenageá-la. "Não posso compactuar com essa narrativa. Uma festa literária não pode ser feita nesse clima."

Paulino é uma das integrantes da Casa Paratodxs, que é parceira do festival e promove uma programação paralela durante os dias de evento em Paraty. De acordo com a editora, ainda não está definido se a casa será remontada no ano que vem ou não —mas adianta que, em caso afirmativo, a posição será crítica e de enfrentamento às ideias políticas de Bishop.

"A Flip parece aquele tipo de festa que está ficando animada, com uma presença diversa agitando o salão. Aí o dono da festa vai lá, expulsa a banda de forró e coloca uma valsa só para o grupo de fraque dançar", ironiza o escritor Marcelino Freire.

Organizador da Balada Literária, em São Paulo, o autor avalia que a escolha por Bishop foi equivocada também por passar uma mensagem de evento elitista ao homenagear uma poeta americana. "O entorno da Flip foi ficando cada vez mais quente e mais político. Com a escolha da Bishop, o evento assume de vez que a festa é para poucos. A Flip vira estrangeira dentro do próprio país", diz.

O escritor e jornalista Ruy Castro, colunista da Folha, fez coro. "Serei favorável à Flip homenagear a Elizabeth Bishop no dia em que um festival literário americano homenagear a Cecilia Meireles."

Apesar de o volume das críticas, autores também defenderam a Flip.

"Vinicius de Moraes, o primeiro homenageado da Flip, tem uma letra de música asquerosamente pedófila: 'Aula de Piano'. Jorge Amado, homenageado de 2006, escreveu que Stálin era 'aquilo que de melhor a humanidade produziu'. Nelson Rodrigues, homenageado de 2007, defendeu a ditadura incansavelmente. No entanto, Vinicius de Moraes, Jorge Amado e Nelson Rodrigues são três escritores gigantes, que alargam a nossa visão sobre a vida", afirma Antonio Prata, escritor e colunista da Folha.

Segundo Prata, Bishop é mais complexa do que uma simples apoiadora da ditadura. "Ela comemorou o golpe militar. Foi abertamente gay numa época em que isso era heresia. Lúcida como poucos. Bêbada como poucos. O ser humano é complexo. É disso que trata a literatura."

Paulo Henriques Britto, tradutor de cartas e poemas de Bishop no país, afirma que as posições políticas da americana vinham do círculo social com quem ela se relacionava. "Era puramente pela turma que ela andava. A opinião dela chocou muitos de seus amigos nos Estados Unidos, todos democratas, como ela", conta. Para o poeta e tradutor, há mais argumentos a favor da escolha da poeta pela Flip do que contrários. "É uma poeta muito boa, que tematizou o Brasil."

A escritora Marta Góes, autora da peça "Um Porto para Elizabeth Bishop", também avalia que as opiniões da poeta vieram de seu entorno. "Ela foi introduzida ao Brasil pela elite brasileira, que sempre teve um desprezo pelo país", diz.

Góes avalia que Bishop passou por um processo de ressignificação. "Fiquei perplexa com a recepção negativa que ela teve. O momento político em que estamos vivendo gerou um significado que Bishop não tinha. Na poesia dela, o Brasil é visto até com olhos amorosos."

"A frase de Bishop, casada com uma lacerdista, sobre o golpe de 1964, é tola, bobinha, ela não entende nada de política", comenta Marcelo Rubens Paiva, autor de livros como "Feliz Ano Velho". "Fui leitor e admirador de apoiadores muito mais aguerridos, como Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues. A questão é: ela é irresistível, apaixonante?"

Paiva se refere à arquiteta Lota de Macedo Soares, companheira de Bishop no Brasil. Integrante da elite carioca, Soares era amiga íntima de Carlos Lacerda —quando governador da Guanabara, no início da década de 1960, Lacerda incumbiu a arquiteta de criar o Aterro do Flamengo, por exemplo.

Nas redes sociais, a poeta Angélica Freitas também defendeu a escolha. "Amo a Bishop em toda a sua complexidade. Uma mulher desenraizada, lésbica, alcoólatra. Teve uma vida trágica, apaixonou-se por uma brasileira e morou aqui (numa bolha de gente rica que hoje apoiaria o Bolsonaro). Uma das maiores poetas do século 20", escreveu. 

Para a escritora Milly Lacombe, a escolha da pode ser uma oportunidade para discutir os dois lados da autora. "Se esse lado sombrio da vida particular, não da obra, puder ser debatido, vai ser maravilhoso", disse. "Ela me comove muito, acho ótimo que ela seja homenageada."

Já o cineasta Bruno Barreto, que dirigiu “Flores Raras”, filme que narra a relação de amor entre Bishop e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, aprovou a escolha: “É uma das maiores poetas do século 20 e que tem uma história com o Brasil. As reações contrárias à escolha são deploráveis, um sinal de pobreza intelectual que estamos vivendo, polarização de direita e esquerda, contra e a favor”.

“Ela era uma pessoa extremamente crítica, crítica com tudo, mas amava o Brasil ao mesmo tempo”, completou. Para o cineasta, o fato de ter sido simpática ao golpe militar não interfere na sua relevância artística. "Nesse caso a Flip não poderia homenagear Manuel Bandeira e Guimarães Rosa. A arte está acima disso”, acredita.​

A curadora da Flip, Fernanda Diamant, conta que já conhecia os posicionamentos políticos da poeta americana ao escolhê-la como autora homenageada, inclusive os elogios ao golpe militar de 1964. "A maioria desses comentários foi feita em cartas escritas de forma íntima para amigos. Eles têm uma longa história de idas e vindas e um acompanhamento da situação política do Brasil ao longo dos anos", afirma.

Segundo Diamant, as avaliações políticas de Bishop estão intimamente ligadas a seu círculo social no Brasil. "Falta um pouco a sutileza de entender o contexto, quem ela era, como vivia, os eventos que foram acontecendo ao longo dos anos", diz.

Diamant lembra que Bishop convivia com pessoas que viam com simpatia o golpe militar e era uma estrangeira com pouco domínio do português àquela altura. "Ela tinha acesso a certos tipos de informação e foi se manifestando com amigos com quem ela se correspondia."

Sobre as opiniões de que a escolha de Bishop não seria a mais adequada por causa do momento político atual do Brasil, a curadora discorda da avaliação. "A gente precisa politizar as conversas. E uma das formas de fazer isso é olhar o passado e refletir sobre ele", comenta. "Ao mesmo tempo que elogia o militarismo, ela critica muito o populismo também. O governo Bolsonaro e esses governos todos são muito populistas. Podemos olhar por esse ângulo, por exemplo."

A quem defende que a Flip deva mudar o autor homenageado, Diamant adianta que essa é uma decisão conjunta com a direção do evento. Mas diz que não há nenhuma mudança prevista. "Do meu ponto de vista, acho que devemos conversar e aprofundar o debate, mas não vejo razão para mudar." 

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