Discografia de João Gilberto não pode ser ouvida na forma que foi lançada

Em meio à briga dos herdeiros com a Universal na Justiça, versões pirateadas dos álbuns do pai da bossa nova circulam online

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São Paulo e Rio de Janeiro

Quatro meses depois da morte de João Gilberto, em 6 de julho deste ano, sua ausência se agrava com o sumiço dos discos do cantor das prateleiras brasileiras. No lugar de uma esperada avalanche de relançamentos que costumam invadir as lojas físicas e virtuais na despedida de um ídolo, há um grande silêncio.

De fato, as três gravadoras que hoje detêm os 17 discos oficiais lançados por João Gilberto entre 1959 e 2004 não vendem nenhum desses CDs ou vinis no Brasil.

Universal, Warner e Sony desistiram de lançar álbuns físicos por causa da mudança do mercado e também por temer processos dos herdeiros de João. Eles ainda brigam com a Universal na Justiça por royalties das vendas de discos desde 1964 e também por danos morais.

 

Na verdade, a empresa Polysom, que produz só fitas cassete e discos no formato LP, lançou no ano passado o vinil de 180 gramas de “Amoroso”, de 1977, licenciado pela Warner. E a Sony informa que vende “Eu Sei que Vou te Amar”, de 1994, mas só no formato digital. Na loja iTunes sai por R$ 19,90.

São os únicos. A Universal, que detém 11 dos 17 álbuns, não informa nada. “Em razão da existência do processo judicial da EMI [parte da Universal] e João Gilberto, não iremos nos manifestar sobre o solicitado.” Nenhum disco da empresa foi encontrado em lojas digitais ou físicas.

Assim, os antigos fãs ficam condenados a sebos, caso queiram ouvir as inovações do criador da bossa nova em suas vitrolas ou aparelhos de CD.

A coisa muda de figura para a geração X e Y, ou ainda para os anciões que abraçaram as novas tecnologias e resolveram escutar músicas em serviços de streaming, como Spotify, Deezer e Apple Music.
Neste caso, a oferta é maior, apesar de um tanto nebulosa.

Segundo a Warner, “para streaming, disponível em todas as plataformas, o único álbum é a coletânea ‘Mestres da MPB - João Gilberto’, de 1992”. Entretanto, “Brasil”, de 1981, além de “Amoroso”, ambos da gravadora, estão disponíveis em todas as plataformas, só que atribuídos ao selo americano Rhino Entertainment —que é subsidiário da Warner nos Estados Unidos.

No caso da Universal, há pelo menos cinco disponíveis na Deezer —“Getz/Gilberto”, de 1964, “Getz/Gilberto #2”, de 1966, “João”, de 1991, “João Voz e Violão”, de 2000, e o último, “In Tokyo”, de 2004. Alguns deles estão atribuídos ao selo Verve que —assim como o Rhino na Warner— é uma divisão da Universal nos Estados Unidos.

No YouTube, site de uso gratuito, há uma página com o nome de João Gilberto, em que diversos álbuns estão organizados por playlists, com capas, títulos e ordem das faixas, tudo adequado aos originais. Discos inteiros como “João Gilberto”, de 1961, fora de catálogo, estão publicados no site desde 2013.

O YouTube é alimentado pelos próprios usuários, por isso tem conteúdo pirata. É comum, contudo, que as gravadoras exijam a retirada do material a que têm direito.

Só que em plataformas com opção de assinatura, com serviço pago, como Spotify —mais popular serviço de streaming de música do mundo—, o catálogo não é alimentado por assinantes, mas pelas próprias gravadoras. O esquema acaba gerando confusões.

O disco “Chega de Saudade”, por exemplo, aparece em diversas versões no Spotify. Pela ferramenta de busca do aplicativo, é impossível encontrar qualquer uma delas, mas uma pesquisa simples no Google com os nomes do disco, do artista e da plataforma revela os álbuns com as mesmas faixas do original. Mudam as capas e, algumas vezes, a ordem das canções —mas estão lá.

À reportagem, o Spotify disse ser “um serviço totalmente licenciado”, com “acordos com todos os detentores de direitos locais e internacionais na indústria da música, incluindo grandes gravadoras e independentes, editores e sociedades de cobrança”.

A maioria desses discos “piratas” de João Gilberto são assinados por selos pequenos e de outros países, que observam leis diferentes.

Uma das versões de “Chega de Saudade” do Spotify é atribuída ao Él Records, selo britânico que surgiu independente e hoje é um subsidiário do Cherry Red Records.

No site da gravadora, é possível inclusive comprar o álbum em vinil, assim como os outros dois da trilogia clássica, da fase da Odeon e EMI (hoje, Universal), com “Chega de Saudade”, de 1959, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, de 1960, e “João Gilberto”, de 1961.

No Reino Unido, na época que o selo britânico lançou os discos de João Gilberto, em 2010, a lei considerava o período de 50 anos para que uma obra musical entrasse em domínio público. Em 2013, a lei foi alterada, aumentado o período para 70 anos.

Advento de alcance mundial, entretanto, o streaming ainda enfrenta confusões com legislações locais. “A maioria dos artistas está no Spotify em todos os países, mas pode haver diferenças regionais para refletir os catálogos locais”, diz a plataforma, em comunicado.

A confusão no acesso à obra de João Gilberto remete à disputa dos herdeiros com a Universal na Justiça.
Em 2015, o Superior Tribunal de Justiça deu ganho de causa a João. Mas as partes ainda não chegaram a um acordo sobre o tamanho da vitória do músico. Hoje, o impasse se dá em torno do número de discos que João vendeu.

Os cálculos da Universal, baseado em notas fiscais apresentadas à perícia, concluem um total de 443 mil discos vendidos de 1964 até hoje. Para os representantes do cantor, o número passa de 5 milhões.

Os advogados dos herdeiros contestam a perícia e afirmam que há centenas de coletâneas de João vendidas no exterior. Grande parte delas, alegam, com as músicas da fase da Odeon e EMI. Essas compilações não estariam entrando nas contas da Universal.

Por causa da disputa judicial, não há ninguém preocupado com o controle desses discos —desde a fiscalização da pirataria até o repasse dos royalties. Nos tribunais, a briga continua. Na prática, os serviços de streaming acabam proporcionando que a obra de João Gilberto continue disponível e acessível, seja pela pirataria do YouTube, seja pelos relançamentos nebulosos de selos gringos.

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