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Disney ameaça arruinar o que tornou a Marvel Comics especial: o debate político

Histórias radicais não chegam à grande tela por que entretenimento desafiador não é lucrativo

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Jared Keller
The Washington Post

Nos dez últimos anos, a antiga editora de quadrinhos se transformou em um gigante do cinema, graças a 23 filmes interconectados, quatro dos quais estão entre as dez maiores bilheterias de todos os tempos. A década de espera por “Vingadores: Ultimato”, a conclusão da Saga Infinito, ajudou a produzir um recorde de US$ 10 bilhões (R$ 41,8 bi) em receita de estúdio para a Disney, a empresa controladora, ou o equivalente a 15% de seus US$ 69 bilhões (R$ 288,6 bi) em receita mundial.

O faturamento de US$ 18,2 bilhões (R$ 76,1 bi) da Marvel Studios nas bilheterias mundiais nos dez últimos anos se tornou crucial para a posição dominante da Disney entre os estúdios, e o sucesso cinematográfico contínuo da franquia atingiu sua culminação esta semana com o lançamento da Disney+ nos Estados Unidos no último dia 12, uma tentativa arriscada e dispendiosa de dominar serviços rivais de streaming como a Netflix e a Amazon Prime Video. O novo serviço será o lar dos filmes da Marvel, no futuro, bem como de outras marcas cinematográficas muito queridas como Star Wars e Pixar.

Mas embora os executivos da Disney pareçam convencidos de que a estrela da Marvel está em ascensão, e fará da Disney+ o centro de gravidade de um vasto e perigoso universo de streaming, a consolidação do cânone da Marvel na Disney+ apresenta uma nova oportunidade de refletir sobre o domínio da cultura comercial dos Estados Unidos pela companhia —e tudo o que isso acarreta.

As narrativas radicais da Marvel fizeram da editora uma estrela fixa no ecossistema dos quadrinhos, mas agora há muito mais em jogo, o que traz novos problemas. Grandes empresas são notoriamente obcecadas por crescimento irrestrito, e sua política (e os muitos compromissos que assumem) tende a usurpar os esforços políticos do material básico. O sucesso comercial da Marvel no mercado ameaça privá-la de suas raízes radicais, e destruir tudo que fez dessa estranha e maravilhosa empresa algo tão valioso, para começar.

De fato, existe ansiedade crescente sobre a hegemonia da Marvel, capturada na recente crítica de Martin Scorsese ao lugar da Marvel no cosmos do cinema americano. Embora o alvo principal de Scorsese seja o entretenimento corporativo —“baseado em pesquisas de mercado e em testes de audiência, filtrado, modificado, refiltrado e remodificado até que esteja pronto para o consumo”—, o subtexto de sua queixa é o de que falta à Marvel a ousadia para produzir um produto cultural de impacto. “Muitos dos elementos que definem o cinema tal qual o conheço estão presentes nos filmes da Marvel”, escreveu Scorsese em artigo para o The New York Times. “O que não está presente é revelação, mistério ou perigo real. Nada está em risco”.

Se isso é fato, não se trata de um problema inerente à Marvel. A editora de quadrinhos foi, pela maior parte de sua vida, revolucionária, criativa e, em diversos momentos, agressivamente política. Nascida da contracultura dos anos 1960 e 1970, a Marvel abraçou o humanismo realista e a veracidade em seu retrato dos heróis vestidos em malha, uma abordagem que, intencional ou não, tornava toda história uma história política. O Homem-Aranha era um nerd solitário que salvava o mundo mas não era capaz de calcular seu saldo bancário; os X-Men, mutantes, deram os melhores anos de suas vidas à proteção de seres humanos que os odiavam e temiam, o que representava uma metáfora transparente para a segregação e o racismo.

Como afirma Sean Howe em “Marvel Comics - A História Secreta” (Ed. Leya, 560 págs.), Stan Lee, o patriarca da Marvel, e a geração de escritores que ele cultivou “contrabandeavam elementos da contracultura para o papel impresso em quatro cores que chegava às bancas anunciado por cartazes amistosos que diziam ‘ei, garotada, quadrinhos!’’. A razão de ser da Marvel sempre foi política” —e sim, ele tem razão.

Foi essa forma de contar histórias que permitiu que os títulos da Marvel superassem constantemente em vendas os da principal rival DC, apesar dos problemas financeiros da primeira no começo dos anos 1990.

Mas a Marvel deve seu status atual como máquina de cultura pop a Kevin Feige, presidente do Marvel Studios desde 2007. Ele aproveitou personagens de segunda linha como o Homem de Ferro e Thor e fez deles um universo cinematográfico inovador e compartilhado, enquanto Sony e Fox permitiam que ativos um dia controlados pela Marvel, o Homem-Aranha e os X-Men, definhassem. Como aponta a equipe de “Vingadores: Ultimato” em seus comentários no DVD do filme, Feige fez com que os Estados Unidos se apaixonassem por um mercador de armas alcoólatra e mulherengo interpretado por Robert Downey Jr., um ator que enfrentou problemas na vida real. Essa é uma realização considerável, já que o personagem passou décadas na periferia da galáxia dos super-heróis, vagamente conhecido mas nunca exatamente famoso.

Mas agora que a Marvel é um pilar central da cultura americana, Feige e seus chefes corporativos não estão imunes à política que dá forma a produtos culturais como filmes e programas de TV. É certo que leitores se queixam há anos das mudanças em seus personagens favoritos —a chegada de um Capitão América negro, Sam Wilson, ou de uma mulher, Jane Foster, como Thor—, mas a Marvel como empresa vem enfrentando críticas crescentes por sua falta corporativa de espinha dorsal, nos últimos meses, depois de retirar um par de artigos que sairiam em suas revistas.

Um deles, de autoria de Art Spiegelman, se referia ao presidente Trump como o “Caveira Laranja” —uma referência ao Caveira Vermelha, inimigo nazista do Capitão América. O outro, de Mark Wald, veterano roteirista da Marvel, criticava o estado atual da sociedade americana como “profundamente preocupante”. Tivemos também a débil resposta de Feige à crítica de Scorsese: que “Capitão América: Guerra Civil” era um filme poderoso porque incluía “uma altercação teológica e física muito poderosa” —mas não um debate político, a despeito de o foco do filme ser um projeto de lei.

Scorsese estava certo, nem que apenas por acaso. Todos os elementos do Marvel Comic Universe são diluídos para consumo mais amplo, se comparados aos seus predecessores nos quadrinhos. Em “Homem de Ferro”, filme de 2008, que serve como uma sutil homenagem ao complexo industrial militar, o alcoolismo que define o personagem de Tony Stark é convenientemente deixado de lado, e mesmo seu aspecto mulherengo é retratado de forma leve, atenuado por seu previsível caso de amor com Pepper Potts (Gwyneth Paltrow). Nos quadrinhos, o Capitão América se desencantou a tal ponto com seus líderes no governo americano, em certa ocasião, que abandonou o escudo e assumiu o nome “Nomad”. Mas nos filmes, suas dúvidas existenciais são reduzidas a uma história de bem contra o mal facilmente digerível, em “Capitão América: Soldado Invernal” e ”Guerra Civil”. Mesmo “Pantera Negra”, saudado como grande avanço tanto para a diversidade nas telas quanto para a narrativa política no universo Marvel, reproduz de forma atenuadas as narrativas radicais e desafiadoras dos quadrinhos. “’Pantera Negra’ é pouco mais que uma maravilha de marketing”, escreveu o crítico queniano Patrick Gathara no The Washington Post. “O filme repete muitos dos mesmos mitos destrutivos sobre os africanos que circulam pelo mundo.”
Histórias radicais não chegam à grande tela por um motivo simples: a Disney produz entretenimento, e entretenimento desafiador não é lucrativo.

Essa tendência no universo Marvel ganha nova urgência no contexto do novo posto de Feige como vice-presidente de criação da Marvel Comics, em uma reformulação corporativa projetada ostensivamente para reproduzir nas páginas dos quadrinhos a magia criada nas telas. E isso significa que a política corporativa pode infectar o material-fonte que continua a ser o coração criativo da empreitada. De fato, o jeito e estilo do time titular em "Os Vingadores', começando por Samuel L. Jackson como Nick Fury, foi inspirado e ditado diretamente pela minissérie de quadrinhos “The Ultimates”, de 2002. Em virtualmente todos os demais detalhes, por toda a franquia, das linhas gerais das histórias a diálogos específicos, a empreitada toda depende dessas histórias em quadrinhos. Quem controla os quadrinhos controla o destino da Marvel como empresa.

Os investidores na Disney e analistas financeiros esperam que o lançamento da Disney+ seja um sucesso, e é certamente possível que ele seja um reforço maior para a criatividade da Marvel do que qualquer saga em quadrinhos seria, mesmo que esta se tornasse um grande sucesso de vendas. Mas já que a Marvel se tornou um alvo tão atraente para a nova era de guerras culturais nos Estados Unidos, um esforço reacionário rumo a uma homogeneidade cultural superlucrativa pode terminar erradicando aquilo que tornou Marvel tão especial por décadas. Todas as estrelas brilham no escuro do céu noturno. Agora, com o sucesso cinematográfico da Marvel apequenando o dos quadrinhos, a morte do universo Marvel por superaquecimento parece cada vez mais próxima.
 


Tradução de Paulo Migliacci

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