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Ideia e metáfora são conceitos que guiam romance de Murakami

Autor japonês propõe discussão sobre o que é consciência em 'O Assassinato do Comendador'

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Lica Hashimoto

Ideia e metáfora. Duas palavras-chave para desvendar “O Assassinato do Comendador”, romance em dois volumes de Haruki Murakami. Isso não significa reducionismo nas possibilidades de leitura e interpretação. Muito pelo contrário.

No primeiro volume, o narrador e protagonista, Eu, de 36 anos, recorda as situações caóticas e inexplicáveis que aconteceram durante cerca de nove meses, desde o divórcio até retomar a vida conjugal.

Ao saber que Eu havia se separado, saído de casa e que não tinha para onde ir, um amigo da faculdade de artes oferece a casa de seu pai, que estava vazia. Esse pai, Tomohiko Amada, era um pintor famoso do estilo tradicional japonês nihonga e, com Alzheimer em fase avançada, estava internado em um asilo.

Certo dia, Eu encontra nessa casa um quadro intitulado “O Assassinato do Comendador”. Um duelo mortal retratado por Tomohiko Amada, que criara uma adaptação da ópera “Don Giovanni” de Mozart, com quatro personagens no Japão do período Asuka. Mas havia uma quinta e misteriosa figura adicional, desenhada na parte inferior da tela, como uma nota de rodapé. Um homem que observa essa cena de dentro de um buraco, que Eu chama de Cara Comprida.

Depois, entra em cena Wataru Menshiki, um homem misterioso que oferece uma fortuna para que Eu desenhe o seu retrato. Até que um guizo começa a ressoar de madrugada e o Comendador se materializa diante de Eu, que, assustado, indaga se ele é um espírito.

“Nã-nã-não, jovens senhores, nada disso. Não sou assombração. Sou apenas uma ideia. Por essência, uma assombração se refere a algo sobrenatural com liberdade irrestrita, o que não é o meu caso. A minha existência tem inúmeras restrições.”

A ideia abriga uma impetuosa potência criadora capaz de assumir formas, conteúdos, significados e sentidos de acordo com a conveniência. Certamente, os leitores de Murakami notaram que seus romances contam histórias de personagens que, após enfrentarem o sistema (ideia) que os oprime, ressurgem novos.

O inconsciente precisa de um mediador (ideia) para pressionar o consciente e das figuras de linguagem (metáforas) para estabelecer as relações dos fatos e das coisas. As analogias, inferências e alegorias são recursos amplamente usados pelo autor para conectar o inconsciente ao consciente e os outros mundos ao real.

Recursos que, segundo a pesquisadora Fumiko Asari, têm o poder de agir no inconsciente conduzindo as personagens para sua autorrecuperação e amadurecimento. 

Nesse sentido, os exemplos de como o autor desenvolve e amplia o conceito literário de ideia podem ser constatados na maneira como introduz, de modo casual e didático, informações que despertam e alimentam a curiosidade intelectual: “Às vezes você não sente que essa casa é grande demais para você, que vive sozinho?”.

“Não, não sinto —respondeu Menshiki, sem titubear. Nem um pouco. Sempre gostei de viver sozinho.

Pense no córtex cerebral, por exemplo. Os seres humanos têm à disposição um córtex cerebral altamente desenvolvido, constituído com uma precisão extrema. No entanto, na prática, o campo do córtex que usamos no dia a dia não chega nem mesmo a 10% do total. Seria como se uma família de quatro pessoas morasse em uma mansão enorme e luxuosa, mas levasse a vida com modéstia.”

É uma analogia curiosa.

Ainda sobre o conceito literário de ideia, em entrevista à cantora e escritora Mieko Kawakami, Murakami afirma que sempre pensa no que vem a ser a consciência. Diz que o surgimento da consciência é relativamente recente na história da humanidade e que, anteriores a ela, as pessoas agiam de modo inconsciente.

E, por isso, as pessoas tomavam as decisões em grupos, nunca do ponto de vista individual. Mas com o desenvolvimento das cidades e o estabelecimento de complexos sistemas e instituições, as coisas que eram realizadas pelo inconsciente passaram a ser transferidas gradativamente para o domínio do consciente, isto é, da lógica. Isso se tornou necessário para manter a eficiência e a validação do sistema.

A linguagem também se desenvolveu para alimentar o sistema. No mundo regido pelo inconsciente, as pessoas se apoiavam nas profecias e, até certo ponto, isso tornava a vida mais simples. Nas sociedades antigas, havia a figura das sacerdotisas e dos reis com poderes mediúnicos que transmitiam as mensagens divinas. Os líderes que perdiam o dom eram mortos e substituídos.

Mas a partir do momento que a sociedade passa a se “conscientizar”, o poder e o dom divinatório enfraqueceram. Segundo Murakami, o conceito de ideia é muito parecido com isso. O que verdadeiramente é autêntico, puro e sincero só existe no nível do inconsciente e, por isso, hoje, não somos mais capazes de perceber corretamente.

Em compensação, passamos a enxergar só as projeções captadas pelo consciente. Arrisco dizer que o Comendador veio do período clássico, do mundo do inconsciente, anterior à conscientização. 

Murakami deixa claro que o conceito de ideia em “O Assassinato do Comendador” não tem relação com Platão e explica que adotou o termo por sua agradável sonoridade. Mas talvez o seu pensamento mais importante seja que o conceito está relacionado ao tempo em que as sacerdotisas e os líderes-monarcas de antigamente tinham o poder de captar mensagens do inconsciente. 

Ao chegar a este ponto, há de se considerar qual seria a referência de Murakami para desenvolver o seu conceito de ideia e metáfora. A resposta pode estar na entrevista que ele concedeu em 2015, ao ser indagado sobre qual livro estaria lendo naquela época. 

Ele respondeu que estava relendo “The Origin of Consciousness  in the Breakdown of the Bicameral Mind”, do filósofo americano Julian Jaynes. 

O livro apresenta a hipótese de que os seres humanos de antigamente tinham a mente cindida em duas e que, de um lado, vinham as vozes (alucinações), que eram conselhos dos deuses, e, de outro, a capacidade de falar, compreender, perceber e resolver problemas como resposta automática a estímulos.

Foi a época em que, segundo Jaynes, os homens eram marionetes dos deuses. O estudo propõe que o ser humano não tinha consciência até cerca de 3.000 anos atrás, quando as vozes foram suprimidas e a consciência revelada por meio da linguagem metafórica. Fica aqui a sugestão de leitura para entender algumas das reflexões que Murakami desenvolve em suas histórias.

Lica Hashimoto é tradutora e professora de línguas orientais da Universidade de São Paulo

O Assassinato do Comendador - Vol. 1

  • Preço R$ 59,90 (360 págs.)
  • Autor Haruki Murakami (Trad.: Rita Kohl)
  • Editora Alfaguara
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