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Livro joga na cara irrealidade de maternidade perfeita

Com retrato excruciante de vidas adultas enjauladas, 'Morra, Amor' é sobre todos nós

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MORRA, AMOR

  • Preço R$ 44,90 (140 págs.)
  • Autoria Ariana Harwicz
  • Editora Instante
  • Tradução Francesca Angiolillo

Eis um livro inteiro sobre as sinapses mais assustadoras e imperdoáveis da mente.

Sabe quando a gente olha para a nossa família e pensa em matar todo mundo? Claro que não. Você, pessoa normal, cônjuge equilibrada, mãe perfeita, não flerta com a psicopatia. Talvez, na análise freudiana ou bem à vontade entre amigos, lhe escape a expressão “hoje eu mato um”. Você nem percebe o ato falho.

É o inconsciente revelando o seu tenebroso esplendor.

A narradora de “Morra, Amor” diz não amar o filho: “mamãe era feliz antes do bebê”, mas se preocupa bastante em checar se ele ainda respira. Longe do rebento, apesar do alívio, é como se lhe faltasse algum membro do corpo. Tem horror ao marido, nojo, mas o provoca, excita, pede em casamento. Quando a sogra, representante máxima de uma obrigação familiar insuportável, torna-se viúva, é essa protagonista tão selvagem (desumana?) a única a entendê-la. Seriam os malucos, os indomáveis, os que não suportam os clichês banais e vazios os únicos a sentir empatia verdadeira?

mulher segurando um bebê
Capa do livro 'Morra, Amor', de Ariana Harwicz, feita pela capista Fabiana Yoshikawa - Shanina/Getty Images/iStock/Editora Instante

Escrito em 2012, esse grande romance foi a estreia da argentina Ariana Harwicz na literatura. Sua edição em inglês foi indicada ao Man Booker International em 2018.

Anseio pela tradução da sequência, chamada por Ariana de “trilogia da paixão” (ou seria da maternidade, posto que é sempre sobre mães e filhos?). “La Débil Mental” (2015) e “Precoz” (2016) ainda não foram lançados no Brasil.

Quem busca no hábito da leitura algumas horas de prazer ou relaxamento deve passar longe dessa obra. A narradora avisa de cara que “vive em seu corpo como quem entra numa casa invadida e tenta atravessá-la sem tocar o chão”.

Incomoda, machuca, choca, em alguns momentos entedia pelo uso exagerado de metáforas em devaneio, mas você não larga o livro. Dá vontade de adotar a tal criança em risco, protegê-la, amá-la. Dá vontade de adotar a tal mãe deprimida, protegê-la, amá-la. Dá vontade de ser completamente sozinha no mundo, não dividir banheiro, obrigações, gestos, caras e bocas do pertencimento e da enfadonha dança social. E é por isso, por nos sentirmos tão dentro da história —ora odiando essa mulher incapaz de maternar e de socializar entre os seus, ora nos identificando tão dolorosamente com ela–, que “Morra, Amor” é, sim, uma narrativa sobre todos nós.

Você passa metade das páginas achando que a protagonista está com depressão pós-parto e que tudo vai ficar bem, mas termina percebendo que, talvez, a depressão pós-parto seja uma doença crônica que adquirimos ao nascer e que passamos a vida toda escondendo.

A incapacidade de visitar amigos levando uma sobremesa que preste, de suportar o tempo perdido em uma mesa toda arrumada para celebrar alguma data festiva (“é preciso parecer entusiasmada e é preciso dar a parecer que isso é viver”), de parir sem enlouquecer, de fechar a janela próxima ao bebê que está tomando antibiótico, de se lembrar de tudo que “o menino” necessita e colocar em uma mochila. Que mãe não se reconhece e não se esforça para esconder tamanha inaptidão? Ariana Harwicz joga na nossa cara a irrealidade de uma maternidade perfeita e feliz.

O que ela deseja, sem poder dizer aos outros com palavras (mas diz com o corpo se cortando entre vidros, se perdendo entre matas, se deitando como um bicho com o amante, se deixando abater pelo marido, sonhando em acalmar o bebê com gritos animais em vez de chupetas), é reencontrar o cervo que “a certa altura aparece e fica me olhando de forma selvagem, como ninguém nunca me olhou. Gostaria de abraçá-lo se fosse possível”.

Apesar de o romance ser o retrato excruciante de nossas vidas adultas enjauladas, me lembrou o tempo todo um poema famoso de Álvaro de Campos que li na adolescência e, já com dificuldade de definir o que é “ser humano”, decorei para sempre: “[…] De sair para fora de todas as casas, de todas as lógicas, de todas as sacadas. E ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos”.

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