Pérola brasileira de De Chirico forma filas em exposição em Milão

Tela 'O Enigma de um Dia' pertence ao Museu de Arte Contemporânea da USP

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milão

Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, São Paulo e, por pouco tempo, Milão. Em pouco mais de cem anos, esse é o trajeto percorrido pela tela “O Enigma de um Dia”, do greco-italiano Giorgio De Chirico, morto em 1978. A obra pertence ao Museu de Arte Contemporânea da USP e, até janeiro, está exposta com destaque na cidade italiana, numa retrospectiva dedicada ao artista.

Considerada uma joia da fase metafísica de De Chirico, a tela, feita em 1914, tem um vaivém quase tão atraente quanto seus atributos pictóricos. Até chegar ao acervo do MAC-USP, nos anos 1960, passou por mãos famosas do cenário artístico do Brasil do século 20.

Seu primeiro grande deslocamento, da capital francesa para a paulista, aconteceu em 1928, após uma viagem da pintora Tarsila do Amaral com o escritor Oswald de Andrade.

Nascido na Grécia, filho de pais italianos, De Chirico morava em Paris desde 1925, em sua segunda passagem pela cidade, “num apartamento modesto transformado em ateliê”, escreveu a brasileira em um texto de 1936.

Tarsila o classificava como “o grande pintor ocidental” e dizia que suas telas “rescendem essa poesia de arquitetura antiga, com perspectivas sugerindo miragens, sombras misteriosas projetadas pelo sol poente, espaço, nostalgia, além”.

Assim é “O Enigma de um Dia”. Com 83 x 130 cm, a obra feita com tinta a óleo tem um vazio e um tom laranja que sugerem um pôr do sol abafado —a cena foi inspirada em Turim, no norte da Itália.

“A tela pertence à produção mais reconhecida de seu período parisiense, entre 1911 e 1914. É a partir dessas obras, às vezes chamadas de ‘piazze d’Italia’, que De Chirico é aclamado pelo crítico cubista Guillaume Apollinaire, que usa pela primeira vez o termo ‘metafísico’ para falar de sua pintura”, explica Ana Magalhães, vice-diretora do MAC-USP.

A pintura metafísica pode ser entendida como o retrato de uma realidade além da palpável, algo que atinge o campo do misterioso, melancólico.

Além de Apollinaire, De Chirico, nessa fase, também chamou a atenção do pintor Pablo Picasso e do marchand Paul Guillaume. Foi este último que, segundo Magalhães, intermediou a venda da tela para o casal de brasileiros em 1928.

Pouco depois, no entanto, Tarsila vendeu essa e outras obras, devido a problemas financeiros e à separação, no começo da década de 1930.

“No fim dos anos 1920 ela tinha uma bela coleção comprada em Paris. Mas a crise de 1929 e, depois, necessidades financeiras no fim de sua vida fizeram com que ela se desfizesse da totalidade delas”, explica Aracy Amaral, uma das principais conhecedoras de Tarsila.

Enquanto alguns trabalhos foram parar em museus fora do Brasil, “O Enigma de um Dia” permaneceu no país.

“Tarsila o vendeu ao empresário Samuel Ribeiro. Anos depois, Oswald o resgatou no Rio de Janeiro, vendendo-o a um grupo paulista que desejava presentear Francisco Matarazzo Sobrinho”, afirma Aracy.

Conhecido como Ciccillo, ele foi fundador do Museu de Arte Moderna paulista e da Bienal de São Paulo. “A tela foi incorporada ao acervo do MAM em 1954”, diz Magalhães.

Nove anos depois, o acervo do MAM, incluindo “O Enigma de um Dia”, seria transferido para a USP, originando o Museu de Arte Contemporânea.

A obra integra a mostra permanente do MAC, mas sua relevância a fez viajar mais uma vez. Desde o fim de setembro e até 19 de janeiro, ela pode ser vista no Palazzo Reale, em Milão, onde uma retrospectiva reúne 88 peças de De Chirico.

Também emprestaram obras a Tate Modern, o Metropolitan, o Centre Pompidou, além de muitas instituições italianas. Outras 18 peças vieram de coleções privadas. São oito salas, organizadas por temas, e “O Enigma de um Dia” aparece logo na primeira.

“O Brasil tem uma pequena pérola metafísica. É um quadro raríssimo, que talvez dê a primeira forma da Piazza d’Italia. Esse trabalho tinha que estar na mostra porque fala da origem de um ícone, de um tópico, de De Chirico”, diz o curador da exposição, o italiano Luca Massimo Barbero.

Ele comenta a existência de uma tela homônima no acervo do MoMA, em Nova York. “São pouquíssimas diferenças. A coisa engraçada é essa ideia dele de replicar.” Sua intenção, como curador, foi extrapolar a fase mais famosa do artista e incluir seus momentos menos elogiados, como sua reinterpretação do barroco.

Barbero destaca, entre a seleção, os autorretratos em que ele se fantasia à la Cindy Sherman, o mistério nos enquadramentos, tal como cenas de um filme de Alfred Hitchcock, e como ele se autocopia na série “As Musas Inquietantes”.

A retrospectiva em Milão faz referência à primeira antologia italiana de De Chirico, em 1970, no mesmo Palazzo Reale, oito anos antes de sua morte.

“De Chirico é tanto amado quanto detestado. A crítica italiana nunca o amou realmente, ao contrário dos colecionadores, arquitetos, poetas e escritores”, diz Barbero.

E, pelo visto agora, também pelo público, que tem formado filas na entrada da exposição.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.