Produções culturais retratam a brutalidade e a beleza na cracolândia, em São Paulo

Uma mostra, um documentário e peças registram histórias daqueles que vivem em região do centro paulistano dominada pela violência e pelo tráfico e consumo de drogas

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Índio Badarós, pintor que está entre os selecionados para a peça 'O Fluxo Expõe' Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

O rapaz retratado na fotografia que ilustra esta página tem uma história bem fora do modelo que muita gente considera convencional. Ele fuma crack, mora na rua, já roubou e foi roubado e tem cicatrizes pelo corpo inteiro, muitas delas nos braços e no tórax —histórico de machucados, brigas e automutilação.

Com as mãos cheias de calos, o tênis e bermuda surrados, o pernambucano Índio Badarós, 43, conta que os insetos gostam dele. Ele está sentado num banco no quintal do Teatro de Contêiner, na Luz, onde vai participar de “O Fluxo Expõe - A Arte da Cracolândia”. A exposição reúne oito artistas que vivem naquela delimitação urbana onde o tráfico e o consumo de drogas são vistos a olho nu. 

“Maloqueiro do bem que aprendeu a viver na calçada”, como ele próprio se define, Badarós mostra, andando pelo seu pescoço, um barbeiro, que ele não espanta. “Tá vendo?”, pergunta. Depois, outro inseto pousa no braço, e ele reitera: “Não estou te falando?”

Naquele dia, ele tinha tido a carroça que usa para recolher recicláveis roubada. Estava chateado porque a sua parca renda estava comprometida até que pudesse encontrar uma outra carroça. A conversa foi de dez minutos porque, triste com esse episódio, ele a interrompeu.

Chegar perto dos moradores de rua e dos usuários de crack que transitam pela região da Luz e pelo bairro Campos Elíseos é uma tarefa que exige empatia, um pouco de coragem, paciência para lidar com situações imprevisíveis. E, sobretudo, uma vontade de enfrentar preconceitos. 

Alguns artistas levaram essa tarefa a sério, em processos que são semelhantes num ponto —eles passam a ter uma experiência própria ali, constroem relações com indivíduos e grupos. A criação artística se apresenta num segundo momento, resultando dessa experiência. 

Só neste mês, três exemplos estão sendo apresentados ao público que tem interesse em entender esses processos. Ou de ver expressões derivadas de uma condição social que é ambiguamente relacionada à miséria, a uma condição psiquiátrica e, ao mesmo tempo, a um pretenso exercício de liberdade, defende Badarós. 

Como “O Fluxo Expõe”, o documentário “Diz a Ela que Me Viu Chorar”, dirigido por Maíra Bühler, e a peça “Guerra”, da Próxima Companhia, procuraram formas de dar voz a pessoas que, em geral, são ignoradas até mesmo quando pedem comida.

A organização da exposição —a palavra fluxo no nome se refere à concentração da cracolândia em frente à Sala São Paulo— tem assinatura de Verônica Gentilin, atriz da companhia Mungunzá, sediada naquela vizinhança há dois anos.

“Nesse período, recebemos aqui muitas pessoas em condição de vulnerabilização, e uma hora descobrimos que eles produzem [arte] também”, diz Gentilin. A exposição está relacionada com uma mostra de repertório da Mungunzá, cujas peças também trazem debates sobre o mesmo tema.

A partir dessa percepção, o grupo passou a pesquisar entre usuários de crack e frequentadores da cracolândia —não, nem todo mundo que vai ao fluxo usa crack— os nomes que poderiam ser reunidos na estreia de uma mostra de repertório do grupo.

O documentário “Diz a Ela Que Me Viu Chorar” teve um obstáculo ainda mais específico. Como entrar com a câmera num lugar em que, a princípio, não se pode filmar —os usuários ameaçam quem os filma, e a possibilidade de que o equipamento de filmagem seja roubado é altíssima.

“Foi um processo demorado”, conta Bühler. O primeiro passo da cineasta e sua equipe foi frequentar a cracolândia e começar a estabelecer conexões. Esse período passa pela criação do programa Braços Abertos, da gestão de Fernando Haddad, e sua estratégia de transformar os hotéis da região em abrigos.

O filme é rodado num desses hotéis, e nos revela conflitos diversos, violências e o espírito de comunidade. Não é um filme sobre o uso de crack, mas sobre relações humanas estabelecidas naquele contexto.

Algumas das cenas mais bonitas retratam relacionamentos amorosos, reflexões sobre a existência e até mesmo a alegria daqueles que participam de sambas na laje.

Bühler conta que a regra que estipulou para poder fazer esses registros foi que só filmaria quando fosse convidada a filmar pelos personagens. Ela e a equipe do longa cumpriam expedientes de oito, nove horas dentro do hotel, sempre à espera. Conforme foram se enturmando e se tornaram figuras familiares, o processo enfim andou.

Essa paciência toda durou até janeiro de 2017, quando os personagens retratados assinaram as autorizações do uso de imagem. Há pérolas extraídas desse processo de criação, que tanto faz lembrar o cinema do documentarista Eduardo Coutinho, de “Edifício Master”, lançado em 2002.

Há, por exemplo, a cena de um rapaz tomando um pé na bunda por telefone. Ele implora pelo amor de uma mulher, que está do outro lado da linha. O tom de voz que usa transita entre a doçura, a autocomiseração e ameaça de violência. “Não valho mais porra nenhuma pra ninguém nesse mundo”, ele diz.

Há momentos cômicos também e às vezes de absoluta leveza. Em um take dentro de um elevador, uma mulher aperta o botão cinco e diz que vai “pros quintos”, deixando de fora o complemento “dos infernos”.

Algumas cenas adiante, há um salto para a depressão. Um homem fala sobre aquele Dia dos Mortos de 2016 que o filme registra. Conta que, por causa da distância e da falta de comunicação, talvez seu pai já esteja morto —e expressa tristeza por não ter notícias.

O filme acaba com uma menção à troca de gestão em 2017 —de Fernando Haddad pela de João Doria, na prefeitura, lembrando que, ao longo da filmagem, a vida no hotel foi abalada por “um prefeito contrário ao programa”. Logo depois o hotel foi fechado, levando a maioria de seus residentes de volta à rua. Foi a interrupção de uma inserção social que, na opinião da diretora do filme, tinha resultados visíveis. 

Por fim, a Próxima Companhia estreou neste mês a peça “Guerra”, sobre diversos conflitos vividos na região central de São Paulo. A cracolândia aparece num dos sete episódios nos quais o espetáculo, que é parte de uma série de intervenções artísticas e experiências com a população dos arredores, se divide.

As políticas de exclusão e de gentrificação são assuntos centrais ali. Há menção às interdições em estabelecimentos e edificações irregulares, especificamente a um episódio em que moradores tentam impedir um grupo de agentes públicos de interditar —lacrando portas e janelas— um imóvel com pessoas que se recusam a deixar o lugar.

O Fluxo Expõe - A Arte da Cracolândia

  • Quando Abertura na sex. (15), às 18h. Seg. a dom., das 11h às 23h.
  • Onde Teatro de Contêiner Mungunzá (r. dos Gusmões, 43, Luz)
  • Preço Grátis
  • Classificação Livre

Diz a Ela que Me Viu Chorar

  • Onde Cine Petra Belas Artes e circuito
  • Direção Maíra Bühler

Guerra

  • Quando Sex. a seg., às 20h
  • Onde Sede da Próxima Companhia; r. Barão de Campinas, 529, Campos Elíseos
  • Preço Contribuição voluntária
  • Classificação 12 anos
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