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Sem ligação com cinema ou TV, nova secretária do Audiovisual engorda 'missão cristã'

No primeiro semestre, Katiane Gouvêa pediu audiências na Ancine e saiu convencida de que todos eram comunistas

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Ao longo de dez meses, o governo Bolsonaro teve três secretários do Audiovisual. Mas Katiane Gouvêa tem uma singularidade: é a primeira que não tem nem sequer a mais remota ligação com cinema ou TV. Sua principal credencial é o envolvimento com a Cúpula Conservadora das Américas, organização que vem ganhando espaço no governo.

As principais funções da Secretaria do Audiovisual, a SAv, são cuidar da formação dos profissionais, da regionalização do fomento, da democratização do acesso e da preservação do conteúdo brasileiro. A SAv é também responsável por diversos editais de fomento à produção.

O primeiro ocupante do cargo, nomeado em fevereiro, foi o diretor e roteirista Pedro Peixoto, indicado pelo deputado Alexandre Frota (PSDB-SP). Peixoto é autor de uma biografia de Frota. 

Quatro meses depois, surgiria a especulação em torno do apresentador e produtor Edilásio Barra, que acabou indo para a Ancine. O substituto de Peixoto, Ricardo Rihan, que agora caiu, é produtor de cinema há 20 anos e se definia como liberal de direita. 

Sala de reuniões
Reunião com Katiane de Fátima Gouvêa (no centro, sem óculos) e ministro Osmar Terra em junho - Anna Virginia Balloussier/Folhapress

Nesses meses todos, Katiane, apesar de neófita no setor, já vinha tratando das questões do audiovisual em alguns gabinetes. Ainda no primeiro semestre, pediu audiências na Ancine e saiu de lá convencida de que todos ali eram comunistas. 

Sua chegada à secretaria, não por acaso, é vista como mais uma ameaça à agência, que vivencia uma sucessão de crises e segue parada.

Desde que o tripé institucional do cinema brasileiro foi estabelecido, em 2001, Ancine e Secretaria do Audiovisual, apesar de terem as competências bem estabelecidas por lei, passaram por momentos de sobreposição.

Ou melhor: por momentos nos quais a secretaria procurou adequar a Ancine aos propósitos dos ministros da Cultura. 

Não é difícil imaginar que isso vá acontecer agora, até porque o secretário de Cultura, Roberto Alvim, nomeado no último dia 7, já convocou artistas conservadores para uma “guerra cultural” e não disfarça o seu impulso messiânico. 

Os movimentos de ocupação da Ancine já se iniciaram, inclusive. Recentemente, foram nomeados três superintendentes, um chefe de gabinete e um assessor de diretoria que, assim como Katiane, não têm ligação com o audiovisual e são indicações políticas.

​Cabe lembrar que a Ancine, que funciona com uma diretoria colegiada formada por quatro diretores, tem hoje um só diretor —de fevereiro até aqui, três deles saíram, por diferentes razões. Ou seja, há três lugares estratégicos vagos. A julgar pelo ímpeto de Alvim para exonerar e nomear, é bem possível que agora saiam as indicações. Mas, no caso de diretores de agência,  os indicados têm de ser sabatinados no Senado.

Tendo em vista que tanto a Secretaria do Audiovisual quanto a Ancine têm certos amparos institucionais, a pergunta que se tenta responder é: até onde os recém-chegados podem ir? 

A definição de editais temáticos, o estabelecimento de novos critérios de avaliação de projetos e a formação de comissões de seleção de perfil ultraconservador são algumas das medidas possíveis.

Tudo isso pode, ao mesmo tempo, levar a uma judicialização do campo audiovisual. 

Cabe lembrar que o cancelamento de um edital voltado à diversidade foi considerado ilegal pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal Regional Federal. Há, além disso, duas instâncias que têm voz: o Conselho Superior de Cinema e o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual. 

O quanto essas instâncias legais e o próprio Congresso Nacional serão capazes de enfrentar a “missão cristã” vocalizada por Alvim só o tempo dirá. 

Mas o fato é que o grupo que, meses atrás, em audiência com o ministro da Cidadania, Osmar Terra, defendeu o “fomento à produção de conteúdos que destaquem símbolos nacionais, o patriotismo e a preservação da família”, não precisa mais pedir reunião. Eles agora são os donos da agenda. 

Ana Paula Sousa jornalista, é doutora em sociologia da cultura pela Unicamp

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