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'Afetos Ferozes' continua atual mesmo escrito há mais de 30 anos

Autobiografia de Vivian Gornick é um livro todo feminino e feminista sobre mulheres de Nova York

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Afetos Ferozes

  • Preço R$ 64,90 (208 págs.)
  • Autoria Vivian Gornick
  • Editora Todavia
  • Tradutora Heloisa Jahn

Escrito há mais de 30 anos, “Afetos Ferozes” não poderia ser mais atual. Por vários motivos.

O primeiro deles é que o feminismo voltou a ser pauta do momento, quando há uma ou duas décadas tinha sumido do radar, e esse é um livro todo feminino e feminista, escrito por uma ex-jornalista do Village Voice, jornal de contracultura nova-iorquino que cobria e polemizava com o movimento feminista durante as décadas de 1960 e 1970.

O segundo é que as biografias viraram as queridinhas do mercado literário, e essa é uma obra-prima do gênero, considerada como tal desde que foi lançada. É fácil de explicar por que. É uma ótima história, sem uma palavra fora do lugar. Isso não quer dizer que o livro seja seco. Ao contrário, as narrações da autora são cheias de detalhes curiosos que fazem as passagens parecerem se materializar nos olhos de quem lê. 

Manhattan vista do navio S.S. Coamo em 1941
Manhattan vista do navio S.S. Coamo em 1941 - Jack Delano/Office of War Information Photograph Collection/Library of Congress

E, por fim, porque Vivian Gornick, hoje com 84 anos, ainda fala sobre ele. Em uma pesquisa rápida, é possível encontrar entrevistas geniais dela discorrendo sobre os temas que lhe são mais caros: a literatura, as biografias e o feminismo. E ainda dá para torcer que ela dê uma entrevista para um veículo brasileiro sobre esse lançamento.

“Afetos Ferozes” foi escolhida recentemente pelo New York Times uma das melhores autobiografias já escritas. O livro tem um recorte preciso. É a história de uma relação de mãe e filha judias, contada durante caminhadas que as duas fazem juntas pela cidade de Nova York, onde moram, durante três anos. Quando começa, a narradora tem 45 anos, e sua mãe, 77. Quando termina, ela tem 48, e sua mãe, 80.

Nesses passeios elas conversam, se provocam, brigam e lembram histórias do passado. A trama vai e vem entre as descrições das caminhadas e as lembranças da vida da autora, desde a infância em um prédio de imigrantes no Bronx até chegar ao ponto onde começa o livro.

Logo no início, ela escreve: “Vivi naquele prédio entre os seis e os vinte e um anos de idade... Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico —maridos, pais, irmãos—, mas só me lembro das mulheres”. Durante sua infância e adolescência, quase todas as mulheres da vizinhança eram donas de casa, enquanto os maridos saíam para trabalhar.

Com sua mãe não é diferente, mas ela não deixa que a filha tenha paz com uma coisa com que ela própria também não entrou em acordo: o fato de ter deixado de ter uma vida profissional “por amor”. Na verdade, o pai a impede de continuar trabalhando quando formam uma família. Além da filha, também tem um filho, que fica sempre à sombra das duas mulheres.

E sua mãe, uma mulher exigente, julgadora e dramática, é de certa forma o centro gravitacional de sua vida e da vida dos moradores do prédio onde viviam, um pardieiro ocupado por imigrantes de classe média baixa na periferia de Nova York.

Há uma terceira mulher importante na história, a vizinha Nettie, uma ruiva sedutora que fica viúva cedo e com um filho pequeno. Ela representa o sexo para a narradora, enquanto sua mãe representa o oposto disso, o amor como a única saída para uma vida honesta. Nettie se veste de maneira provocante e parece não se importar de ser uma péssima dona de casa e uma mãe desatenta. Mas sabe atrair os homens, e também a atenção da autora, com quem forma um vínculo forte.

Nos anos no Bronx, quando o sexo deixa de ser uma coisa nojenta que ela flagra entre adultos em duas passagens memoráveis (em uma delas, Nettie está deitada sobre um padre em sua cama, com a porta do quarto entreaberta, enquanto seu filho de cinco anos assiste a tudo amarrado em uma cadeira), a vizinha e sua mãe travam uma queda de braço simbólica dentro da narradora. Ela acha que pode vir a ser como uma ou como outra, a união das duas influências em uma só pessoa parece impossível.

Sem dar mais nenhum spoiler, é possível dizer que esse é um livro que aborda toda a complexidade da vida de uma mulher dos dias de hoje, mesmo que tenha sido escrito há tanto tempo e que narre também fatos de muitas décadas atrás. Isso porque as histórias contadas, ainda que impressionantes, importam menos do que o jeito como são descritas e o que elas representam na vida interior de Vivian Gornick.

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