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Anos de aflição: relembre os filmes que marcaram os últimos dez anos

Período no cinema termina com Netflix como potência, produções pouco ousadas e busca por representatividade

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São Paulo

Naquele início dos anos 2010, a Netflix era relegada ao pé de página dos cadernos de cultura e exigia um epíteto em qualquer reportagem que a citasse.

“Locadora americana”, “locadora online”, “serviço de aluguel de filmes” e “operadora de vídeos” eram formas que a Folha encontrava, nos idos da década, para apresentar aos leitores a então obscura gigante do streaming, que desembarcaria no Brasil em setembro de 2011.

O passar dos anos colaria a ela uma outra qualificação, “disruptivo”— anglicismo afetado que serve para explicar o impacto sísmico que a Netflix causou no mundo do cinema. Se havia entrado na década como uma ilustre desconhecida, ela encerra os anos 2010 com algumas estatuetas do Oscar no bolso e como o motor da maior transformação na forma como se consome filmes hoje.

Imaginar que se poderia assistir em casa a um recém-lançado filme de Martin Scorsese, como “O Irlandês”, era algo impensável dez anos atrás, quando o mundo ainda vivia a ressaca de “Avatar”, a megaprodução recordista de bilheteria que estreou nos dias derradeiros de 2009 e que parecia anunciar que o grande horizonte do cinema seria tão-somente o 3D.

Diante da ameaça crescente do vídeo sob demanda, estúdios tradicionais apostaram no lançamento massivo de seus blockbusters. A estratégia foi ocupar o maior número de salas de cinema possível e arrecadar o máximo no menor tempo para compensar o intervalo cada vez mais curto com que um título estaria disponível para ser visto em casa. 

Funcionou com a torrente de franquias recauchutadas que deram as caras nesses anos. Com medo do fracasso, Hollywood apostou em requentar sucessos passados —"Star Wars", "Alien", "Planeta dos Macacos", "Rambo", "O Exterminador do Futuro", "Blade Runner", "Os Caça-Fantasmas", fora as versões em live-action das animações da Disney, que voltaram a pairar por aí como testemunho de que o cinema americano nunca foi tão pouco ousado e pouco criativo. 

Se houve um filão que definiu o período foi o dos super-heróis, em particular os da Marvel. Com "Homem de Ferro", em 2008, a empresa deu início a seu bem-sucedido plano de dominação das telas, espaçando títulos ao longo dos anos. Foram 21 as obras que lançou no período. O truque foi criar um intrincado universo narrativo que interligasse todos esses longas e culminasse no estrondoso "Vingadores: Ultimato", que encerrou essa fase de produções no último mês de abril.

Nada mais sintomático do período atual, de descrença nas instituições tradicionais e ascensão de populistas salvadores da pátria, do que se apegar a essas figuras superpoderosas, que resolvem os problemas do mundo na base da porrada.

Super-heróis foram pontas de lança no projeto de maior expansão da indústria americana, que mirou países emergentes e, sobretudo, o gigantesco mercado chinês, como forma de compensar a retração do hábito de ir ao cinema em solo ianque. Algumas tentativas de fisgar o mercado externo foram mais descaradas, caso de "A Grande Muralha", de 2016, obra que traz Matt Damon cerrando escudos com guerreiros chineses contra invasores monstruosos. 

A internacionalização cobrou como preço mais representatividade no que exibia a tela. Mesmo o território americano já estava mais miscigenado e não se via mais iludido pelos mocinhos brancos de sempre. "Pantera Negra" e "Mulher-Maravilha" foram algumas das respostas dadas por Hollywood para saciar um público mais diverso. Até o reboot de "A Bela e a Fera" teve de fazer um sutil aceno aos gays

O tema só ficou mais acirrado nos últimos meses de 2017, quando vieram à tona os escândalos sexuais envolvendo o magnata da indústria Harvey Weinstein, acusado de assediar dezenas de mulheres. A partir dali, nomes vistosos começaram a cair um a um num dominó de “cancelamentos”, conforme surgiam queixas de abusos e iam se inflamando movimentos feministas como o MeToo, que deram a tônica dos debates no fim dos anos 2010. 

Agora que esses anos chegam ao fim, o domínio do streaming parece consolidado a tal ponto que chega a ser possível crer que poucas salas de cinema vão restar em pé no fim dos anos 2020. Como crer que, após se acostumar a ter tudo sob demanda, ao alcance do botão, o público vá continuar querendo se dobrar a locais e horários que não foram os estabelecidos por ele?

O Brasil, é claro, não passou ileso pelo fenômeno. Foi, aliás, o primeiro país onde a Netflix aportou após Estados Unidos e Canadá. E encontrou por aqui uma produção audiovisual que experimentava um boom particular.

O cinema brasileiro havia ingressado nos anos 2010 em seu auge —ao menos do atual ciclo. A retomada da produção, em meados dos anos 1990, havia lançado uma geração de realizadores que conseguiram exibir os filmes nacionais em festivais estrangeiros, e a criação da Ancine, em 2001, havia pavimentado o começo de uma indústria pulsante.

Enquanto os títulos autorais rodaram as mostras lá fora, o público brasileiro se viu espelhado nas comédias —o ensaio do gênero foi com “Se Eu Fosse Você”, em 2006, que investia na manjada trama da troca de corpos entre um casal para abrir a porteira para um filão.

“Até que a Sorte Nos Separe”, “De Pernas pro Ar”, “Minha Mãe é uma Peça” foram algumas das franquias brasileiras que pipocaram nos últimos dez anos. Exibidas em multiplexes de shopping centers que se multiplicaram naqueles anos, elas surfaram na onda da expansão da classe C do período de transição entre os governos Lula e Dilma e refletiram nas telas muito daquele universo simbólico. Venderam milhões de ingressos.

A recessão econômica, a partir de 2015, freou a gargalhada. E a crise política, dela decorrente, derrubou os petistas e mergulhou o país num acirramento de ânimos. Naquele último ano de PT no poder, o cinema autoral renderia um fruto como “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, uma didática ode lulista à mobilidade social.

Mas o cineasta que melhor soube decantar a flutuação de humor do país nos anos 2010 talvez tenha sido Kleber Mendonça Filho, o mais incensado dos diretores do período.

A trama de seu primeiro longa, “O Som ao Redor”, de 2012, já antevia o retesamento social brasileiro que se avizinhava e pairava como uma energia difusa antes do impeachment de Dilma. Eram as rixas corriqueiras do cotidiano, brigas entre vizinhos que escondiam desigualdades ancestrais do país. 

Os anos transcorreram e seus filmes foram ficando menos sutis conforme o próprio Brasil se engalfinhava na polarização. “Aquarius”, de 2016, botava na boca dos personagens diálogos que pareciam saídos do Fla-Flu das redes sociais. “Bacurau”, de 2019, não deixava espaço para qualquer meio-termo: é nós contra eles vertido num faroeste de cabeças rolantes. 

O cinema brasileiro encerra os anos 2010 mergulhado em seu momento mais delicado dos últimos 25 anos. A chegada ao poder de Bolsonaro, que mostra verdadeira ojeriza pela produção nacional, coincidiu com o impasse da Ancine, questionada pelo Tribunal de Contas da União a respeito da forma como fiscaliza a prestação de contas dos projetos audiovisuais por ela aprovada.

Essa tempestade perfeita provocou um enxugamento nos recursos públicos à produção —lógica que não só havia abastecido o mercado nacional com produto local como também feito rodar internacionalmente os títulos feitos aqui.

O cinema brasileiro ingressa nos anos 2020 mergulhado em incerteza e na pesarosa constatação de que vive de ciclos, e não de uma consistente política de Estado.

Dez filmes para entender os anos 2010

‘A Rede Social’ (2010), de David Fincher
Documentou a ganância por trás da geração que criou o Facebook, rede que saciou o narcisismo generalizado e abalou democracias mundo afora

‘Melancolia’ (2011), de Lars von Trier
O estado de ânimo que pautou a década de infortúnios foi revisitado pelo diretor dinamarquês, que se viu proscrito ao dizer que ‘compreende Hitler’

‘O Som ao Redor’ (2012), de Kleber Mendonça Filho
Reavivou o interesse internacional pela produção brasileira, sobretudo a pernambucana, e captou as crescentes tensões sociais do país

‘Frozen’ (2013), de Chris Buck e Jennifer Lee
Foram quase 20 anos sendo eclipsada pela Pixar até que a Disney pudesse, graças a essa animação, retomar seu reinado sobre o gênero que sempre dominou

‘Boyhood - Da Infância à Juventude’ (2014), de Richard Linklater
Filme rodado ao longo de 12 anos com o mesmo elenco retrata a conturbada passagem para a adolescência na vida de um garoto

‘Tangerine’ (2015), de Sean Baker
Inteiramente filmado com iPhones, o drama independente é o cume de um processo de democratização na maneira de fazer cinema

‘A Criada’ (2016), de Park Chan-wook
Roteiro bem costurado e erotismo transbordante fizeram desse um dos melhores exemplos da pulsante produção da Coreia do Sul

‘Corra!’ (2017), de Jordan Peele
Abrigou uma das grandes discussões do período, o tema da representatividade, e deu novo gás ao terror de crítica social

‘Roma’ (2018), de Alfonso Cuarón
Com ele, a Netflix teve a sua maior arma para conquistar prestígio em Hollywood, que era o que faltava para o serviço de streaming dominar o cinema

‘Coringa’ (2019), de Todd Phillips
Os revoltados anônimos contra o sistema se viram representados nesse longa que subverte o filão mais popular do período —o dos filmes de super-herói

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