Claudia Tajes faz humor com sensações de mulher que acorda em corpo de homem

Inspirado em Kafka, 'Macha', novo livro da escritora gaúcha, aborda descoberta feminista no Brasil atual

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Porto Alegre

Gregor Samsa, personagem de Franz Kafka, desperta transformado em um inseto gigante. Celina, uma bancária divorciada e mãe de um adolescente, também acorda de “sonhos intranquilos”, mas no corpo de um homem.

Samsa, aos poucos, percebe suas “numerosas pernas”. Celina, por sua vez, sentiu a “pelve sendo puxada”. “Coloquei a mão ali e encontrei um pênis”, revela a narradora do romance “Macha”, de Claudia Tajes, recém-lançado pela L&PM.

“Tem que ser muito macha para ser uma mulher contra o que está posto ou reagir diante de algo ruim que te acontece”, explica Tajes à Folha sobre a flexão no gênero feminino do adjetivo “macho”.

Celina Machado sofre, claro, com a transformação. Mas o tom é mais cômico do que de lamentação. Não faltam críticas ao cenário atual, lembrando as colunas de Tajes na Folha.

Novo livro da gaúcha Claudia Tajes traz reflexões com tom humorístico.
Novo livro da gaúcha Claudia Tajes traz reflexões com tom humorístico. - Ricardo Jaeger/Folhapress

“Engraçado como, até virar homem, eu nunca tinha ouvido falar que os brasileiros morriam de pinto mal lavado. Que os pintos apodreciam e precisavam ser extirpados por conta da sujeira”, reflete Celina, acrescentando que isso “virou preocupação da presidência do país, então devia ser coisa séria”.

A autora diz que chegou a citar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro. “Tinha escrito, bolsominion, Bolsonaro. Depois da leitura do Ivan [Pinheiro Machado, editor da L&PM], decidimos tirar com a esperança de que ele não dure tanto tempo. Por que vamos imprimir ele nessas páginas? Por que botar o nome dele? Não precisa”, disse Tajes.

A protagonista cortou laços com pessoas próximas por causa de política. A melhor amiga, Solange, “passou a defender a economia liberal e o fim do ensino público e do financiamento à cultura, entre outras ideias do tipo”. “Não resisti quando ela colocou uma foto de perfil fazendo arminha. Arminha era demais”, conta sobre o rompimento.

Porém, acabou recorrendo à amiga depois de acordar em um corpo de homem. “Que reação minha ex-melhor amiga teria ao me ver, essa era tão imprevisível quanto o preço da gasolina, do dólar e de todos esses índices que os liberais descontrolam a seu bel-prazer”, reflete Celina.

A autora explica que tem se sentido “monotemática” por causa da política. “Li esses dias o Luis Fernando Verissimo falando que ele senta para escrever e tenta não escrever sobre o que está acontecendo no Brasil de hoje e não consegue. Sinto isso quando escrevo a coluna da Folha”, conta.

Embora a cidade onde se passa a história de “Macha” não tenha um papel predominante na narrativa, sabemos que se trata de Porto Alegre, cidade da autora. Um dos indícios são referências ao parcelamento de salários de professores estaduais e policiais.

“Tem que ser muito macha para ser uma mulher contra o que está posto ou reagir diante de algo ruim que te acontece”, afirma Cláudia Tajes à Folha
“Tem que ser muito macha para ser uma mulher contra o que está posto ou reagir diante de algo ruim que te acontece”, afirma Cláudia Tajes à Folha - Marcos Nagelstein

Tajes chegou a escrever uma coluna sobre a situação da educação no Rio Grande do Sul. “A gente acaba escrevendo sobre onde tu conheces, onde está teu nó e onde desafoga. Porto alegre não sai de dentro da gente”, diz ela, que se divide entre a capital gaúcha e o Rio de Janeiro, onde trabalha como roteirista da Globo.

O feminismo desperta em Celina, paradoxalmente quando ela se vê como um homem. A personagem passa enxergar outras mulheres sem defeitos e, finalmente, se aceita como uma mulher “maravilhosa”.

“É um feminismo maduro. Tenho mais de 50 anos e, por muito tempo, não achei que isso fosse importante. Não me sentia prejudicada, trabalhava em uma agência de propaganda, fazia bons trabalhos e ganhava direitinho. Mas, olhando para trás, nunca fui promovida de redatora a nada enquanto meus colegas foram todos promovidos a diretores. Engraçado como naqueles anos 1990 e até os 2000 não via como machismo”, conta.

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