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Com olhar poético, 'Cafarnaum' pede mudança social e ação do Estado

Filme foi debatido no Ciclo de Cinema e Psicanálise na terça-feira (10)

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São Paulo

O garoto tem 12 ou 13 anos —não sabe a idade exata, porque nunca foi registrado— e leva uma vida miserável, mas não incomum na periferia de Beirute: em vez de ir à escola, vende suco na rua para ajudar na renda da família extensa, dorme no chão, amontoado aos irmãos, e apanha com frequência dos pais. 

Após ser separado da irmã predileta, vendida aos 11 anos como esposa a um homem adulto, ele foge de casa para tentar a sobrevivência na rua. Mas o desfecho que o protagonista do filme “Cafarnaum” recebe não apenas é feliz como aponta para um benfeitor incomum na maioria dos países pobres: o Estado.

Premiado quatro vezes no Festival de Cannes e indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro, o longa da libanesa Nadine Labaki foi exibido e debatido na terça-feira (10), na última edição do ano do Ciclo de Cinema e Psicanálise. O evento é realizado pela Sociedade de Psicanálise de São Paulo e pelo MIS (Museu da Imagem e do Som), com apoio da Folha.

Para os debatedores, o filme se sobressai ao exigir a ação do Estado e apontar a natureza sistêmica de problemas como a violência e o desamparo social. “Zain passa de fantasma a cidadão graças a um documento, o que implica interferência do Estado. De resto, a sociedade cria regras próprias que tendem ao cafarnaum”, afirmou o psicanalista Luiz Meyer, remetendo ao título do filme, palavra árabe para caos.

Na análise de Meyer, “Cafarnaum” trata de enclaves. Há o enclave social, correspondente à região desassistida de Beirute na qual a história se desenrola —e que funciona como uma espécie de depósito de dejetos da sociedade libanesa— e o enclave psíquico, que corresponde à parte da nossa personalidade que julgamos inaceitável. 

A psicanálise chama o descarte de pedaços da identidade tidos como ameaçadores de identificação projetiva. Uma possível consequência disso seria a paranoia, ou seja, o sentimento de que não há uma integração possível do sujeito com o mundo exterior. “O sujeito precisa criar trincheiras que o separem de si próprio, da parte cindida”, explicou Meyer. 

Em “Cafarnaum”, a parte de si da que Zain tenta se desfazer a todo custo são os próprios pais, o que dificulta a formação de uma identidade própria. Ele busca nas pessoas que conhece na rua, como uma imigrante etíope e seu filho pequeno, sanar sua necessidade de afeto e exercer, segundo Meyer, um mundo interno organizado e maternal que destoa de sua experiência de vida.

Para Cassiana Der Haroutiounian, fotógrafa e artista visual que edita o blog Entretempos, publicado pela Folha, a fotografia molda a narrativa do filme. Ao privilegiar o uso da câmera baixa, por exemplo, a diretora nos insere nas cenas a partir da perspectiva de uma criança; já a tremedeira constante da câmera na mão comunica a tensão e a instabilidade permanente na trama.

O foco no olhar de Zain, por sua vez, é a porta de entrada para a história do personagem, e as tomadas com drones, que mostram a cidade de cima, remetem à natureza coletiva e estrutural dos temas explorados no filme.

Apesar de ter sido criticado por ser, supostamente, apelativo, “Cafarnaum” apenas sugere seus principais episódios de violência. “A gente pode comunicar essas problemáticas todas sem mostrar a violência, só pelo gesto, pelo olhar”, disse Cassiana. “Não precisa ser explícito e sensacionalista para tocar e fazer a gente pensar em todas essas questões.”

Para ela, a obra de Labaki é pautada por um “olhar poético e feminino”, atento às sutilezas dos personagens. Se, por um lado, o filme não defende teses explicitamente, por outro, tem um apelo político claro. “Ela quer entrar em contato com o governo, tentar alguma mudança na sociedade.”

Não à toa, a pesquisa de campo que embasou o roteiro foi extensa, e a trama ficcional se apropriou de muitas histórias reais que a equipe de Labaki ouviu nas ruas de Beirute. O intérprete do protagonista também se chama Zain, e é um refugiado sírio que vivia no Líbano havia oito anos quando as filmagens começaram. Boa parte do elenco tem origem similar e conhece, por exemplo, a dificuldade de se regularizar —o que, para Cassiana, contribuiu para a crueza das atuações. “Esses refugiados não são nada sem documentos. São ausências, não são ninguém”, afirmou. No debate, ela leu um poema do poeta sírio Adonis que trata de temas adjacentes aos do filme.

O psicanalista Luiz Meyer também relacionou as histórias mostradas em “Cafarnaum” ao conceito de desobjetalização, a retirada ou esvaziamento do que há de humano no sujeito. No filme, isso se evidencia com a venda de crianças como mercadoria ou força de trabalho. “A diretora mostra que o continente onde são depositados os dejetos —esta é a função do enclave— tem capacidade de resistir à desumanização que lhe é imposta”, disse. “O que exigimos do Estado? O cuidado.”

A psicanalista Luciana Saddi, que mediou a discussão, ressaltou as semelhanças do filme com o Brasil. “Cafarnaum é aqui. É a praça da Sé, é a cracolândia, onde você for.”

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