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Deserto de ideias, especial natalino do Porta dos Fundos não traz novidades

Média-metragem não é digno de desatar as sandálias de 'A Vida de Brian', sua influência óbvia

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Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Gregorio Duvivier, Fábio Porchat e Antonio Tabet
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Rodrigo Van Der Put

Piadas grosseiras sobre a vida sexual da Virgem Maria, de Jesus e do próprio Deus Pai são a base de “A Primeira Tentação de Cristo”. Previsivelmente, o especial natalino do grupo de humor Porta dos Fundos, na Netflix, despertou a ira de muitos cristãos país afora.

A grande ironia, entretanto, é que ridicularizar a sexualidade da Sagrada Família não tem nada de modernoso. Pelo contrário: é uma tática antiquíssima, quase tão vetusta quanto a própria fé cristã.

Menos de dois séculos depois do nascimento de Jesus, por exemplo, insinuações sobre a infidelidade conjugal de Maria já circulavam nos escritos do filósofo pagão Celso (compostos provavelmente em torno de 180 d.C.). Segundo Celso, a jovem judia teria traído seu noivo, o carpinteiro José, com um soldado romano de nome Pantera. Grávida do legionário, Maria teria sido abandonada por José.

A história parece ter sido incorporada por textos judaicos da Antiguidade, como o Talmude, que mencionam um misterioso curandeiro herege chamado Ben Pantere (“filho de Pantera”).

Insinuações sobre a possível homossexualidade de Jesus tampouco são grande novidade. A existência de um relacionamento íntimo —e talvez sexual— entre Cristo e um “jovem nu” é uma das possíveis interpretações do Evangelho Secreto de Marcos, fragmento que teria sido descoberto num mosteiro ortodoxo da Cisjordânia e que foi estudado pelo historiador americano Morton Smith no século passado.

Ainda há muitas dúvidas sobre a autenticidade do texto —alguns estudiosos creem que o próprio Smith teria forjado o manuscrito.

Por fim, afirmações sobre o caráter supostamente malicioso ou violento de Deus Pai, contrastando-o com o lado “paz e amor” de Jesus, estão por toda a parte na literatura gnóstica, uma corrente de pensamento que parece ter sido muito importante entre os cristãos do Egito nos primeiros séculos após a morte do Nazareno.

Nada há de novo debaixo do Sol, portanto —ainda que não pareça muito provável que os roteiristas do Porta dos Fundos tenham se dado ao trabalho de procurar uma edição bilíngue grego-inglês dos Evangelhos apócrifos antes de escrever as cenas do especial.

Seria bem mais fácil assistir de novo a “A Vida de Brian”, sátira bíblica do grupo britânico Monty Python, lançada em 1979, cuja influência sobre o especial brasileiro não poderia ser mais óbvia.

O que é ainda mais óbvio, no entanto, é que “A Primeira Tentação de Cristo” não é digna nem de desatar as sandálias de “A Vida de Brian”.

Não faltam insinuações sexuais ou certa grosseria aos esquetes do filme do Monty Python, mas as piadas são capazes de fazer o sujeito refletir, nem que seja um tiquinho —como na cena em que o pseudomessias Brian diz a um bando de seguidores: “Vocês podem pensar por si mesmos! Vocês são indivíduos” e eles respondem repetindo mecanicamente as mesmas palavras.

Até a cantoria do grupo de crucificados, entoando “Pois a vida é bem absurda/ E a morte é a palavra final”, tem um amargor filosófico que, no fundo, está a anos-luz da mera tiração de sarro.

Quase nada disso está presente no comparativo deserto de ideias da versão brasileira. Nem a guinada final para algo que pode ser descrito como uma mistura de “Matrix” com “O Exorcista” e “Os Trapalhões” (incluindo uma piscadela à la Renato Aragão) é capaz de salvar o especial.

Faz algum sentido contar uma história como essa pelo mero prazer de mostrar Maria sendo bolinada por Deus Pai, ou para ver Jesus chamando Satanás de “boy lixo”?

Em tempos como os que vivemos, é compreensível que humoristas respondam que a questão é mostrar que essa forma de liberdade ainda é possível. O risco que se corre, por outro lado, é reforçar ainda mais a impressão de que estamos divididos em campos irreconciliáveis, nos quais um lado é totalmente incapaz de entender os valores do outro. 

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