Fernando Brant morreu há quatro anos carregando, aos olhos de artistas mais jovens, a pecha de retrógrado. Dirigente de uma grande entidade arrecadadora de direitos autorais, ele era visto como alguém preso a princípios que não faziam tanto sentido em tempos de streaming, Creative Commons e de escolhas individuais sobre como se vender o que se cria.
Um CD como “Vendedor de Sonhos”, com vários intérpretes, funciona para lembrar que, antes de tudo, ele foi excelente letrista. Basta ouvir para constatar. Com produção e arranjos de seu sobrinho Robertinho Brant, o trabalho deixa claro que a obra de primeira linha do compositor é a que vai dos anos 1960 até o início dos 1980.
Das 20 canções, a mais recente é a autobiográfica faixa-título, de 1987, que tem qualidade inferior às anteriores. As vozes são de Flávio Venturini e Marina Machado.
O restante é coisa fina. Foram faixas compostas durante a ditadura militar e, para quem viveu a época, trazem um misto de alegria e angústia. A primeira, pela qualidade delas, fortes e comoventes. A segunda, por rescender a tempos sombrios, semelhantes aos que, em outro registro, voltamos a viver.
Os intérpretes convidados se bateram contra a dureza que é regravar músicas que Milton Nascimento lançou quando a limpidez e a extensão de sua voz eram incomparáveis. Djavan optou por abrir “Milagre dos Peixes” num falsete que presta reverência a Milton, ficando livre para, depois, dominar a canção à sua maneira.
Em “Vida”, Zé Renato adota um registro menos agudo do que o habitual, como que se distanciando da linda versão original.
Nina Becker, de voz pequena, traz “Outubro” para o tom da melancolia, enxugando a exuberância de Milton.
A escolha de Dori Caymmi foi perfeita. Gravou “Sentinela” só voz e violão, formato em que é mestre. Livrou-se assim da marcante versão barroca que sua irmã Nana e Milton Nascimento fizeram em 1980.
Toninho Horta também decidiu se acompanhar em “Travessia”, valendo-se de ser exímio instrumentista e sócio do Clube da Esquina, o vasto time que mudou a música brasileira na década de 1970. No repertório, “Travessia” era incontornável, pois, além de histórica, foi a primeira letra escrita por Brant, até então um jornalista.
Milton, de faro apurado, apostou nele. Mas “Maria Maria”, “Nos Bailes da Vida” e “Canção da América” ficaram, acertadamente, de fora, pois já cumpriram seu papel.
A nostálgica “Saudade dos Aviões da Panair” —remetendo, no caso, aos otimistas anos 1950— dói mais nas trevas de hoje. E Joyce Moreno aponta isso em versão firme, mas sem excessos.
Ouvem-se de novo músicas lado B, casos de, por exemplo, “Credo”, com o Boca Livre justificando as primeiras pessoas do plural que há na letra; “Amor Amigo”, com a ainda incrivelmente pouco conhecida Paula Santoro, e “Maria Três Filhos”, com outro nome do Clube, Tavinho Moura.
Dos expoentes do Clube, aliás, estão no álbum Beto Guedes (“San Vicente”) e Lô Borges (“Durango Kid”), presentes ali com conhecimento de causa.
Milton Nascimento também participa, é claro, mas com interpretação discreta. Escolheu uma canção que nunca gravara, “O Medo de Amar É o Medo de Ser Livre”, das últimas que Elis Regina cantou —ao vivo. Elis, aliás, é uma sombra para Mônica Salmaso, pois interpretou “O que Foi Feito Devera” em 1978 com a força e o fôlego absurdos que tinha. Mas Salmaso se sai muito bem no árduo desafio.
Quanto às outras faixas, que se assinalem dois momentos: “Saídas e Bandeiras nº 1”, com Seu Jorge imprimindo a intensidade necessária, e “Beco do Mota”, obra-prima lúgubre de Milton e Brant da qual o mineiro Tadeu Franco dá conta com louvor.
Escutar de novo os versos de Brant é prazer que dá orgulho (e um pouco de tristeza) de ser brasileiro.
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