'É da minha natureza mudar o tempo todo', afirmava o artista Fernando Lemos

Morto nesta terça aos 93, o artista luso-brasileiro deixa uma produção multifacetada

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Beatriz Antunes
São Paulo

Se os agentes do ditador Salazar taquigrafaram as conversas de bar dos poucos surrealistas da Lisboa dos anos 1950, o resultado deve ter saído mais à moda dadaísta: completa falta de sentido. O grupo falava em código quando havia agentes por perto.

Para Fernando Lemos, um dos membros da confraria, a língua dos intelectuais só serviu como escudo por um período curto. Bastou expor o seu trabalho para o recado ser compreendido. Até os agentes da Pide, a polícia salazarista, entenderam. A atmosfera pesada se tornou sufocante.

Era janeiro de 1952. Lemos e dois outros artistas estreantes causaram escândalo ao montar uma exposição surrealista numa loja do Chiado, bairro elegante de Lisboa. Com um abaixo-assinado, a polícia foi acionada para fechar a mostra. Lemos passou a ter silhueta destacada entre os espionados pelos agentes do regime. 

A primeira coisa que ele pensou ao descer no Brasil foi em voltar. Era março, e o calor castigou a pele desacostumada de europeu. Mesmo assim o jovem fotógrafo identificou-se imediatamente com o país.

“Percebi que era um lugar para se arregaçar as mangas e trabalhar. Era o que eu queria”, afirmou numa entrevista a esta repórter, em 2009.

No país tornou-se conhecido principalmente como fotógrafo. É curioso, já que assim que pisou aqui, abandonou a fotografia. Circulou pelas importantes bienais de arte da década de 1950 nas quais ganhou, além de prêmios, salas especiais com suas pinturas e desenhos, dirigiu e ajudou a fundar museus e casas de cultura, publicou livros, deu aula de design gráfico, casou, descasou, teve filhos.

“Não tenho coerência, tenho fases de trabalho completamente distintas umas das outras. É da minha natureza mudar o tempo todo”, disse na entrevista, apontando para um conjunto de duas telas inéditas que nada tinham a ver com as fotos, que por sua vez não pareciam ter saído do mesmo artista que desenhou as formas coloridas que repousavam numa das mesas do ateliê, no bairro do Butantã, em São Paulo.

“Antigamente não tinha esse negócio de artista multimídia, mas é o que as pessoas hoje dizem que sou.” O rótulo de moderno não o incomodava.

Quando chegou ao Brasil, virou caricaturista símbolo da resistência de além-mar. Naturalizou-se brasileiro, mas queria mesmo era ser anônimo.

“Quanto menos você der a entender o que é, melhor. O importante é dar a entender do que você é capaz, o gesto do artista é o que interessa, o que ele produz”, afirmou.

No começo da noite o ateliê escurecia rapidamente. A janela que rasgava a parede de ponta a ponta parecia uma tela de cinema. O que se via logo abaixo eram as três principais vias de acesso à ponte sobre o rio Pinheiros, com milhares de faróis vermelhos e setas piscando para os lados. 

Por causa do silêncio, a vista ganhava um ar terapêutico. “Antes o seu Fernando vinha pra cá e passava a tarde inteira olhando pra lá, com as luzes apagadas”, disse Giovanni, seu assistente, enquanto apagava as luzes e manobrava a cadeira de rodas do artista para o carro estacionado. 

“Isso aqui não estava à venda, mas quando passei em frente e vi que os fundos davam para aquela vista, insisti com o dono para vender. Gosto da impressão de que os carros estão todos indo embora, me abandonando”, completou Lemos e caiu na risada.

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