Descrição de chapéu The New York Times

Exageros e cara de improviso marcam ópera de Kanye West

'Nebuchadnezzar', apresentada no Hollywood Bowl, é um trabalho passional mas enigmático, que recorre à mais recente forma de provocação do rapper —sua salvação

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Zachary Woolfe
Los Angeles | The New York Times

Qual é a única forma de arte vasta o suficiente para conter a grandiosidade de Kanye West, suas queixas e causas, seu elenco de milhares de colaborações, sua religiosidade e o talento para o design que ele proclama ter? Será que já houve alguém tão operístico na música?

Mas ser uma pessoa operística não significa ser capaz de criar uma boa ópera. E “Nebuchadnezzar”, a passional e intrigante obra que West definiu como ópera —anunciada em 17 de novembro e encenada no Hollywood Bowl apenas sete dias mais tarde— não era realmente uma ópera, e tampouco era realmente boa.

pessoas com as mãos levantadas em cima de palco
Kanye West apresenta 'Nebuchadnezzar', que ele classifica como uma ópera, no Hollywood Bowl em Los Angeles - NYT

O trabalho é uma declaração ruidosa da fé cristã que West reencontrou este ano. Sentado na lateral do palco e falando com urgência inflamada, ele lia trechos do “Livro de Daniel”, da Bíblia —sobre um rei louco que encontra Deus—, enquanto um enorme coral se movia pelo palco cantando frases em latim.

O tal coral é o Sunday Service, grupo com que West vem se apresentando em performances em estilo de igreja, desde janeiro. O grupo também participou do nono álbum de West, “Jesus Is King”, e tem posição central em seu novo trabalho, intitulado “Jesus Is Born”, que sairá, sim, no Natal.

O Sunday Service ruge de um modo purificador. E West claramente estava em busca de purificação e de cura, depois de um período tumultuado de show cancelados, vício em opiáceos, hospitalização por doença mental, apoio público ao presidente Trump que enfureceu boa parte do país, e declarações incoerentes sobre a escravatura que enfureceram praticamente todo mundo.

Sua forma mais recente de provocar é ostentar sua salvação. “Jesus conquistou a vitória porque agora o maior artista que Deus já criou está trabalhando para ele”, disse West no púlpito da megaigreja de Joel Osteen, em Houston, no começo deste mês.

E que maneira melhor de enfatizar a seriedade de sua fé do que uma ópera? “Nebuchadnezzar”, uma peça de 56 minutos de duração, começou com pouco mais de duas horas de atraso, com o coral enchendo o palco e cantando, enquanto uma figura em azul brilhante se contorcia e gritava no meio deles (seria perdoável pensar em “Jesus Cristo Superstar”). A figura representava Nabucodonosor, rei babilônio que, de acordo com a Bíblia, conquistou os judeus e alistou alguns deles como servos.

Um desses servos, Daniel, interpretava os sonhos do rei, entre os quais uma visão de Nabucodonosor vagueando durante sete anos por terras inóspitas. Depois de cumprir esse período de insanidade, o rei retornava repleto de um novo espírito de modéstia, glorificando a Deus.

pessoas andando em cima de palco
Kanye West apresenta 'Nebuchadnezzar', que ele classifica como uma ópera, no Hollywood Bowl em Los Angeles - NYT

Havia algo de intrigante na opção de West por fazer com que Nabucodonosor, interpretado pelo jovem rapper Sheck Wes —de “Mo Bamba”, sucesso viral do ano passado—, se expressasse principalmente por meio de gritos e grunhidos, uma visão de masculinidade tóxica tornada ininteligível.

Um solista homem parecia estar fazendo o papel de Daniel, ainda que, por algum motivo, também houvesse uma solista mulher cantando mais ou menos a mesma música —em geral, sem letra definida e repleta de firulas exageradamente operísticas, um pouco ao modo de Andrea Bocelli.

Sons eletrônicos ásperos eclodiam ocasionalmente, trazendo recordações da produção sombria de “Yeezus”, álbum que West lançou em 2013.

Não havia muitas letras, e era quase impossível distingui-la, da plateia. Uma musicóloga que assistiu à apresentação na internet disse no Twitter ter ouvido “lux aeterna” e “rex gloriae”, que são frases da missa do réquiem, e “animus deum”, que não é. A direção de palco, com exagero nos efeitos de fumaça, comandada pela artista performática Vanessa Beecroft, que colabora com West há muito tempo, esclarecia as coisas apenas de maneira intermitente. 

A apresentação teve cara de improvisada, o que não deixa de ter seu charme mas, especialmente se considerarmos os preços de alguns ingressos, também foi decepcionante.

A sequência mais impressionante envolvia a estátua que Nabucodonosor manda construir e ordena que seja cultuada. No caso, havia um ator sobre um grande pedestal, vestido de um tecido dourado reluzente, uma visão escultural móvel elegante e fantasmagórica, digna dos melhores trabalhos de Beecroft. Mas o palco em geral parecia atulhado e desajeitado, com batalhas encenadas e danças circulares que terminavam amontoadas.

Nada disso desqualificaria “Nebuchadnezzar” automaticamente da classificação como ópera. Há óperas sem letras, óperas faladas, óperas confusas. Essa forma de arte oferece espaço até para outra meditação abstrata sobre o despertar religioso de mais um líder do passado remoto: “Akhnaten”, de Philip Glass, em cartaz em Nova York.

Mas o estilo direto de apresentação de “Nebuchadnezzar” —o domínio da narrativa simples, a falta de personagens reais, o conteúdo religioso— colocam a peça mais na categoria dos oratórios, como “Messias”, de Haendel.

Essa é certamente uma distinção acadêmica, mas sugere que West estava mais interessado em evocar os paramentos de uma ópera do que em dar forma dramática efetiva, expressa em música, a esse material fascinante.

“Nebuchadnezzar” se satisfez em contar a história. A sensação era a de que tudo aquilo era apenas acessório para as palavras que West estava lendo.

Por acaso, o primeiro sucesso duradouro de Giuseppe Verdi foi “Nabucco”, ópera que também fala de Nabucodonosor. Aquele trabalho dá estatura trágica ao rei louco, mas o mantém reconhecivelmente humano, traduzindo sua jornada de fé em emoção por meio de música que acompanha a paisagem mutável. E era preciso que West oferecesse alguma conexão persuasiva entre a música e o teatro.

Há sementes de alguma coisa na peça. Fica claro que West se vê na história, e duplamente —como Daniel, o narrador, mas também como o o líder sofredor que encontra a paz em Deus. Mas ele não foi capaz de transformar essa identificação em arte. Nessa altura de sua carreira, isso importa menos a West do que a oportunidade de ostentar, gritando trechos da Bíblia diante de milhares de pessoas, como um pregador de rua em escala maciça.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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