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Incompreensão de 'Watchmen' sobre o Vietnã solapa mensagem da série sobre o racismo

A visão da série sobre a guerra, e seus personagens vietnamitas, revela relutância em encarar as consequências do imperialismo americano

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Viet Thanh Nguyen
The Washington Post

Alerta: o texto contém spoilers.

O povo vietnamita ocupa um lugar inquieto na imaginação americana desde a guerra dos Estados Unidos no Vietnã. Inicialmente, os vietnamitas existiam como crianças que necessitavam de orientação. Nas palavras de John Kennedy em 1956, “se não somos os pais do pequeno Vietnã, somos no mínimo os padrinhos”. Os vietnamitas que não queriam essa orientação se tornaram a nova versão de um velho medo, o “perigo amarelo” que ameaçava o Ocidente. Desde então, oscilamos entre essas imagens gêmeas, como beneficiários agradecidos do paternalismo americano ou como ingratos inescrutáveis. Nossa presença na cultura pop sempre se apegou um conjunto estreito de arquétipos: refugiados, bandidos, prostitutas, combatentes do Vietcong e soldados sul-vietnamitas incompetentes ou corruptos.

O universo “Watchmen” de super-heróis, que imagina uma cronologia na qual os Estados Unidos venceram a guerra no Vietnã, aproveita essas figuras típicas. Em uma cena que cita explicitamente “Apocalypse Now”, o filme de 2009 mostrava um gigantesco Dr. Manhattan avultando por sobre a paisagem, disparando raios que despedaçavam soldados vietcong. Em seguida, um de seus colegas anti-heróis confronta sua amante vietnamita grávida e lhe dá um tiro em sua cabeça. Esses momentos feios pretendem claramente invocar a ideia de que a guerra é um inferno, e que a guerra do Vietnã foi um inferno especialmente doloroso, levando os americanos a exibir seu pior lado. Mas também fazem algo típico de Hollywood: reduzem os vietnamitas a subumanos que existem apenas para morrer.

Por isso, ao decidir assistir a elogiada série da HBO, eu sentia tanto empolgação quanto cautela. A série “Watchmen” estende aquilo que não passava de uma menção, na graphic novel original. Depois da guerra, os Estados Unidos fazem do Vietnã o 51º estado do país e ele se torna o local de nascimento da heroína da série, Angela Abar (Regina King), uma policial que é filha de um soldado negro e sua mulher. A série também apresenta uma personagem vietnamita proeminente, Lady Trieu (Hong Chau), uma cientista trilionária que tem ambições enigmáticas (e um corte de cabelo horrível, que nenhuma mulher vietnamita toleraria), e sua filha, a precoce Bian. Essa presença representa um avanço substancial para a cultura pop americana: a série traz não só uma mas duas personagens vietnamitas. Com direito a falas! E elas falam inglês fluente!

Mas embora eu concorde com o entusiasmo dos críticos com relação ao aspecto artístico da série, minhas esperanças logo se frustraram. “Watchmen” recebeu aplausos merecidos por seu foco intenso no racismo como principal mal dos Estados Unidos. Os vilões principais da série são terroristas que descendem da Ku Klux Klan. Mas em última análise a série fracassa, em seu tratamento da guerra. Não se trata apenas de um erro cosmético ou de uma omissão trivial em um esforço no geral bem-intencionado de promover “diversidade” ou “inclusão”. Em lugar disso, a descrição bastante circunscrita dos vietnamitas indica uma relutância em encarar o poder imperial dos Estados Unidos e seu entrelaçamento com a supremacia branca.

O modelo para compreender a interseção dessas forças vem de “Para Além do Vietnã”, um poderoso discurso de Martin Luther King contra a guerra. Nele, King critica a política americana de desviar fundos destinados a aliviar a desigualdade dentro do pais para o que ele via como uma guerra racista. King também descreveu a trágica ironia de enviar jovens negros e pobres para combater no exterior, ostensivamente em defesa da liberdade e da democracia dos povos do Sudeste Asiático, quando essas coisas não lhes eram garantidas em seu país. Na zona de combate, esses jovens pobres experimentavam uma realidade amarga. Por fim estavam lado a lado com os brancos, como iguais nas forças armadas, mas apenas em “brutal solidariedade” no combate aos povos do Sudeste Asiático. King exigiu que os americanos ouvissem as vozes dos vietnamitas em seu sofrimento, e apelou que saíssem às ruas em protesto. Previu que, se a guerra não fosse detida, os americanos estariam condenados a marchar, marchar e marchar uma vez mais, no futuro. King compreendeu profeticamente como a supremacia branca e a hostilidade contra os negros se conectavam às guerras externas dos Estados Unidos, passadas, presentes e futuras. É revelador que a maioria dos americanos conheça o discurso “Eu Tenho um Sonho”, de King, sobre a desigualdade racial no país, mas poucos tenham ouvido falar de “Para Além do Vietnã”.

“Watchmen” compreende de forma apenas parcial a importância da guerra. Uma parte especialmente sofisticada da narrativa acompanha a maneira pela qual um terrorista suicida em Saigon deixou Angela, a personagem central, órfã. Perceptivamente, a série imagina que, embora alguns vietnamitas estejam felizes por serem americanos, outros vivem furiosos com a ocupação. Que os ocupantes imaginários incluam pessoas não brancas é um reconhecimento do complicado papel que os negros americanos sempre desempenharam dentro dos Estados Unidos —um país poderoso em todo o mundo e que necessita de soldados negros, mas também é racista e antinegros.

Mas o engajamento da série com o Vietnã para nisso. Angela não expressa muitos sentimentos ou reações sobre o lugar em que nasceu. Embora vincule as mortes causadas pelo Dr. Manhattan ao assassinato de seus pais, em revanche, não exibe muito ressentimento quanto às ações do super-herói. Sua conscientização sobre a supremacia branca não vem acompanhada por conscientização semelhante sobre o imperialismo americano —ou, aliás, por qualquer conscientização sobre isso.

Lady Trieu poderia ter ocupado o vazio no entendimento de Angela (e da audiência). De certa maneira, ela personifica os americanos de ascendência asiática como uma minoria modelo: altamente inteligente, rica e poderosa, dominante na tecnologia, e impiedosa. Mas também porta o nome de uma das guerreiras lendárias vietnamitas que ajudaram a liderar a luta contra a colonização do pais pela China. O final, infelizmente, deixa irrealizado boa parte do potencial da trama —tanto em termos do poder de agência vietnamita quanto em termos de crítica ao imperialismo americano. Lady Trieu tenta matar o Dr. Manhattan e se apoderar de seus poderes, e por isso precisa ser morta.

Não estou argumentando que a serie deveria ter transformado a personagem dela em um salvador inconteste. No mundo moral de “Watchmen”, egomaníacos com poder absoluto podem ser tão perigosos quanto as organizações que promovem a supremacia branca. Teria sido igualmente satisfatório ver Lady Trieu como um herói decaído, um Lúcifer coroado com um chapéu "khan dong" de seda.

Mas isso não aconteceu. As personagens vietnamitas de “Watchmen” não têm a vida interior ou a história pregressa que caracterizam os personagens branco e negros. Suas ações têm consequências mas são inexplicáveis, suas motivações não têm raiz. Em um exemplo especialmente grotesco, a mãe de Lady Trieu rouba o sêmen de um supervilão, presumivelmente para conceber uma filha geneticamente bem dotada. Mas para que fim? Jamais descobrimos. Quanto a Lady Trieu mesma, ela tem alguns diálogos para explicar suas ações. Quer usar os poderes do Dr. Manhattan para destruir as armas nucleares e eliminar a fome mundial. Mas esse raciocínio parece incompreensível, quase aleatório —e certamente não se enquadra à preocupação central da série com os males do racismo.

O que faltou para as personagens vietnamitas foi mais um episódio —a versão delas para o soberbo episódio seis. Ao lidar com os antecedentes de um super-herói negro, Hooded Justice (Justiça Encapuzada), o episódio torna um personagem antes incompreensível mais humano e explicável. Por um lado, um episódio a mais não seria pedir demais. Por outro, seria pedir muito —que os americanos encarem uma das coisas mais difíceis para eles: sua história e o presente do pais como potência imperial.

Esse superpoder é muitas vezes usado para matar ou promover a matança de pessoas que vivem além das fronteiras dos Estados Unidos. Esse superpoder tem uma história de origem mal compreendida, na qual a ascensão de um país que veio a dominar o mundo está inextricavelmente ligada à ascensão da supremacia branca nos Estados Unidos. Esse superpoder raramente é usado para salvar o mundo.

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