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Lúcia Hiratsuka vence dois prêmios Jabuti ao criar livros a partir da memória

  Autora e ilustradora teve duas obras ganhadoras na cerimônia deste ano em duas categorias

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São Paulo

No chão de terra do sítio Asahi, a avó de Lúcia Hiratsuka costumava se sentar com a neta e fazer a poeira ganhar os contornos de peixes, até surgirem nadadeiras e escamas terrosas. Bastava um vento forte ou um chuvisco para apagar os desenhos —fazê-los desaparecer do solo, nunca da memória.

Mais de 50 anos após aquele início de década de 1960, Hiratsuka deixou de ser a neta de imigrantes que só falava japonês e vivia na zona rural de Duartina, cidade a cerca de 370 quilômetros da capital, São Paulo, para se tornar uma das principais autoras e ilustradoras de livros para crianças e jovens do país.

Tanto que na última cerimônia do Jabuti, que ocorreu no fim de novembro, ela levou duas estatuetas no mais tradicional prêmio literário nacional. 

Seu “Histórias Guardadas pelo Rio” (SM) venceu na categoria de melhor livro juvenil, enquanto “Chão de Peixes” (Pequena Zahar) ganhou na de melhor ilustração. Este último venceu também, no ano passado, o prêmio da Biblioteca Nacional como melhor obra de literatura infantil.

A escritora Lúcia Hiratsuka, que venceu dois prêmios Jabutis neste ano, no Museu de Arte Moderna de São Paulo
A escritora Lúcia Hiratsuka, que venceu dois prêmios Jabutis neste ano, no Museu de Arte Moderna de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

As duas histórias giram em torno da natureza, são guiadas pelas correntezas dos rios e têm páginas repletas de peixes, como se as águas da infância da autora no interior levassem os animais desenhados no chão pela avó para as páginas dos livros.

Mas ambos trazem estéticas diferentes. Em “Histórias Guardadas pelo Rio”, Pedro desvenda os segredos guardados pelos pescadores que oferecem lendas —todas criadas com traços que lembram 
ilustrações feitas com giz de cera ou lápis de cor. 

Já em “Chão de Peixes”, Hiratsuka apresenta pequenos poemas acompanhados de imagens produzidas com uma técnica japonesa chamada sumiê, uma escola de pintura oriental que equilibra pinceladas técnicas e rigorosas, mas, ao mesmo tempo, suaves.

“Comecei o livro há quase 20 anos, quando fazia aula de sumiê com meu mestre, mas a história foi sendo adiada por causa da crise nas editoras, até que saiu no ano passado. Foi bom, tudo tem seu tempo”, diz a autora, quase que com o clichê da paciência oriental.

Ilustração de "Chão de Peixes", livro de Lúcia Hiratsuka
Ilustração de "Chão de Peixes", que usa a técnica do sumiê - Divulgação

Embora um dos livros se sustente na poesia enquanto o outro se esbalde na narrativa, eles são unidos pelos mesmos anzóis. Além das matas, ambos são feitos de uma memória da infância, de um quintal afastado da cidade, de palavras recheadas de silêncios e ilustrações que mais sugerem do que dão contornos.

Tudo isso faz parte de um projeto literário que une não apenas esses títulos, mas os demais livros de Hiratsuka. “O tempo que vivi na roça é uma fonte inesgotável”, ela conta.

Se os tempos de criança e a busca por uma identidade fizeram surgir os dois títulos mais recentes, isso vem acompanhando a carreira da ilustradora desde o início, quando ela ainda fazia recontos de mitos japoneses, e a seguiu em seus livros autorais, pescados sobretudo na convivência com os pais e os avós.

 
Ilustração do livro "Histórias Guardadas pelo Rio"
Ilustração do livro "Histórias Guardadas pelo Rio" - Reprodução

Foi dessa relação que surgiu, por exemplo, “Os Livros de Sayuri” (SM), de 2008, que é um dos marcos de sua trajetória. Acompanhada por desenhos cinzentos, a história parte de uma experiência real da mãe de Hiratsuka.

Filha de imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil na década de 1920, ela estava chegando ao período escolar quando o Brasil declarou apoio aos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, o que fez o colégio dos japoneses ser fechado —não só isso: os livros da comunidade foram proibidos e enterrados. 

É assim que começa o livro, com um enterro no qual ninguém morreu. “São experiências pessoais, mas que trazem grandes questões, como o sentido da vida, nosso papel no mundo, o imprevisível da existência”, diz Hiratsuka. “Pode ser uma criança da roça, do Japão, da capital... Ela sempre traz essas perguntas.”

Nascida em um sítio cheio de livros, que já não precisavam mais ser enterrados em solo brasileiro, a menina que até os sete anos só falava japonês hoje abastece diferentes bibliotecas de crianças daqui. 
“Desde que meus avós escolheram o Brasil, minha prioridade foi escrever para os leitores daqui”, diz ela, como um rio que até pode nascer longe, mas que só fica caudaloso onde se sente em casa.

Histórias Guardadas pelo Rio

  • Preço R$ 50 (64 págs.)
  • Autor Lúcia Hiratsuka
  • Editora SM

Chão de Peixes

  • Preço R$ 49,90 (48 págs.)
  • Autor Lúcia Hiratsuka
  • Editora Pequena Zahar
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