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The New York Times

Os atrativos do Baby Yoda, como os de 'The Mandalorian', parecem ser todos superficiais

E se o futuro da TV viesse a consistir de versões deliciosas e irresistíveis, prontas para memes, de propriedades intelectuais que já amamos há muito tempo?

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James Poniewozik
The New York Times

Primeiro, uma confissão. Ainda não escrevi sobre “The Mandalorian”, da Disney+ —a maior das séries novas de TV da grande plataforma nova do maior conglomerado de mídia do planeta, e parte de numa mitologia pop que pode ser descrita como a maior da cultura americana— porque não consegui compreender sobre o que é “The Mandalorian”.

É um western, mais ou menos? É uma mistura de comédia sobre melhores amigos e de retorno às velhas aventuras para todas as idades que marcaram os anos iniciais da televisão. É uma daquelas histórias em que um herói busca redenção mas nela o herói aparece por trás de um escudo, obscurecido, e não apenas pelo capacete que perversamente nos impede de ver o rosto do carismático e belo Pedro Pascal.

Nas imortais palavras de Lucille Bluth, a série também é “uma guerra nas estrelas” —ou seja, ela é composta basicamente pelas sequências de cenas de ação e de momentos leves que ocupam as porções centrais dos filmes da franquia “Star Wars”, mas sem as narrativas mais amplas e as restrições que elas acarretam. É o tipo de série que começa com alguém sendo atacado em uma batalha espacial, sem introdução ou explicação, o que o espectador aceita porque presume que é assim que as pessoas do universo passam 99% de seu tempo.

Mas apesar de todo o custo e do legado cinematográfico, não há muita coisa de substancioso. Em uma era de imensas sagas nos serviços de streaming, com tramas enciclopédicas e de longa duração, cada episódio dura 40 minutos ou menos. Quase não existe trama. Mando chega com sua sacola verde oliva a algum lugar da galáxia, entra em uma briga e a briga logo se resolve, zás-trás, história encerrada.

É uma experiência quase perfeita para o espectador. Tudo é ridiculamente previsível, mas isso é parte do prazer. Se o espectador não soubesse no começo do primeiro episódio que a presa do caçador de recompensas durão e lacônico provaria ser uma criatura vulnerável e que introduziria um dilema moral na narrativa, minha avaliação seria a de que ele nunca assistiu a um filme ou programa de TV.

Mas isso é claramente o milagre da coisa. A série convida o espectador a retornar àquele estado no qual as histórias eram novas para ele, quando ele ainda não tinha visto tudo, quando ele ainda não tinha visto coisa alguma, quando ele não tentava resolver ou derrotar histórias, e permitia que elas o arrastassem, e maravilhassem.

E é isso que acontece comigo. Devoro cada episódio de “The Mandalorian” no dia em que ele é liberado. É uma alegria. E essa alegria logo acaba. Diferentemente de “Game of Thrones”, “Succession” ou “Mr. Robot”, não existe uma vasta mitologia ou subtexto que engaje o espectador. Se você tentar analisar a história de “The Mandalorian”, ela desaparece como fumaça capturada com o punho cerrado. É como se a série nunca tivesse existido, até que chega a sexta-feira e ela ressurge.

Só uma coisa permanece: o Baby Yoda.

O Baby Yoda, a semana toda na minha mídia social e news feeds. Imagens animadas do Baby Yoda e memes do Baby Yoda. O Baby Yoda zoando o painel de controle da espaçonave de Mando. Baby Yoda erguendo a mãozinha para invocar a Força. Baby Yoda, em trajes de jedi e tomando sopa enigmaticamente, com a caneca alterada digitalmente para dizer “minha casa / minhas regras / meu café”.

E é isso que “The Mandalorian” é, de verdade —pelo menos do ponto de vista daquilo em que a televisão está se transformando em 2019. “The Mandalorian” é apenas o receptáculo. Baby Yoda é a carga.

Os atrativos do Baby Yoda, como os de “The Mandalorian”, parecem ser todos superficiais. Olha só aquele rostinho! Se você é adulto, quer acalentá-lo. Se é criança, quer brincar com ele. Baby Yoda é vulnerável —estamos condicionados biologicamente a proteger aquele corpo franzino e aqueles grandes olhos— mas também, com base naquilo que sabemos sobre a Força e sobre o Yoda adulto que a exercia, é um ser quase inimaginavelmente poderoso.

Seus atrativos têm por origem o mito de “Star Wars”, mas vão ainda mais fundo. Um bebê de origens desconhecidas e dotado da força vital do universo: estamos quase no Natal, e não preciso conectar o restante dos pontos para os leitores, mas outras pessoas já o fizeram, colocando o pequeno órfão e seu berço antigravitacional em presépios cósmicos.

Ele não é de fato Yoda —a não ser que estejamos diante de uma reviravolta de trama que envolva viagens no tempo. E pode ou não ser um bebê —quem diabos conhece a biologia de seja lá qual for a espécie a que ele pertence— mas o roteiro o identifica, quase religiosamente, como “A Criança”.

Ele é curioso e traquinas, como um personagem enrugado da Pixar. Enquanto seu ancestral na versão mais velha girava em torno de inversões de sintaxe e retórica de autoajuda dos anos 1970 e 1980 —evoluir, você deve—, o pequenino não fala. A galáxia de “Star Wars” está repleta de criações —R2-D2, os jawas, os porgs— que conquistam o carinho da audiência ao falar de maneira ininteligível ou guardar o silêncio (O grande pecado de Jar Jar Binks foi abrir a boca).

Não sou feito de beskar (ferro mandaloriano, na série). Basta ver aquelas orelhas caídas e os olhos cheios de ternura e me derreto completamente, como todo mundo.

Mas precisamos encarar o outro lado do apelo do —Baby Yoda— não o lado bebê, mas o lado Yoda. A Criança é vulnerável, adorável, fantasiosa, fofa —mas o que fez dela uma celebridade instantânea foi o fato de que era todas essas coisas na forma de um personagem de décadas de idade que o público já reconhecia e amava.

E é claro que “coisas que você já reconhece e ama” é a força motora da indústria do entretenimento hoje, especialmente o cinema, um setor no qual a Disney criou ou adquiriu o controle de um vasto elenco de ícones dos super-heróis e ficção científica, e faz bilhões de dólares ao colocar sua propriedade intelectual —“PI”, como a sigla de uma linha de androides de combate— em salas de cinemas em toda parte.

Vingadores, jedis, princesas —previamente vendidos, previamente reconhecidos e previamente amados.

O serviço Disney+ mal completou um mês, mas sugere uma visão do streaming não muito diferente da estratégia da Disney para os cinemas multiplex, baseada em marcas já familiares. Além de “The Mandalorian”, há ou haverá séries baseadas em “Toy Story 4”, no universo Marvel, em “Monster Inc.”, “High School Musical” e, uma vez mais, “Star Wars”.

Se você tem idade para lembrar a trilogia original de “Star Wars”, deve recordar um período de mais de uma década na qual a ideia de outras histórias para além dos três filmes originais era simplesmente uma provocação cruel. Agora, você pode conseguir mais histórias com a mesma facilidade com que consegue água na torneira —e receberá mais histórias, quer considere que isso é uma boa ideia, quer não.

E no comando disso tudo vem o Baby Yoda, desafiando o espectador a encontrar problemas nisso. Sim, estamos falando de uma potência hegemônica do entretenimento corporativo, tentando conquistar a TV da mesma maneira que conquistou o cinema —mas olha que fofinho, como ele toma sopa na caneca! Como ficar zangado com algo assim?

“The Mandalorian” é um entretenimento delicioso e esperto. Também é a Disney dizendo que sim, nos dará nossa infância de presente, repetidas vezes —mas cada reaparição será nova, e fofa, e genuinamente inventiva, e levemente distorcida, mas de um jeito aceitável. Isso dará empregos bem remunerados a pessoas brilhantes como Werner Herzog e Amy Sedaris. Empregará os talentos de artistas visuais que combinarão o melhor dos filmes pipoca e o melhor dos filmes de arte, dentro dos parâmetros das franquias em que precisamos que eles trabalhem.

E o espectador ajudará a criar tudo isso! Parte do que tornou o Baby Yoda um fenômeno é que ele não parece ter sido imposto de cima para baixo. “Baby Yoda” é o nome que nós demos a ele, e não o nome dado pela Disney —e seu caráter, seu lugar no vocabulário pop do ano, foi criado tanto pelos fãs que postam memes online quanto pela série em si.

É espantoso, mas a Disney não estava preparada com uma montanha de produtos do Baby Yoda para a temporada de festas, e teve de correr para recuperar o atraso. (Outra informação difícil de acreditar é que animações em GIF do Baby Yoda foram expurgadas da internet por um breve período, embora não por obra da Disney).

O acontecido parece ter sido simplesmente uma mancada empresarial nada característica. Visto de outro modo, porém, foi um golpe genial de marketing.

Significa que, ao menos no começo, o Baby Yoda não era algo que fosse possível comprar. Era preciso encontrá-lo sem ajuda. Era preciso praticar um ato de criação, e assim cada pessoa se sentia proprietária de um pedaço do sucesso de uma guerrilha de marketing viral envolvendo uma das maiores franquias que já existiram no mundo do entretenimento. O Baby Yoda, em sua concepção, não foi um personagem vulgar criado para ser licenciado. Foi uma busca, um caminho divino.

Se a TV tivesse um prêmio de Pessoa do Ano em 2019, o Baby Yoda ganharia. Ele é adorável e apavorante.

Pode bem ser que ao crescer se torne nosso mestre.

Mas não nosso único mestre —pelo menos é o que espero. Quero mais TV do que aquilo que já conheço. E talvez porque fui uma criança criada com “Star Wars”— que um dia foi, embora isso seja difícil de lembrar hoje, uma criação arrojada e um risco -, continuo a ser otimista.

Parece que estamos no começo de uma nova era para a televisão, na qual as fronteiras entre TV e cinema estão desaparecendo não só em termos formais mas também comercialmente, de modo que a TV da era do streaming pode vir a ser tão dominada por franquias quanto a temporada de filmes de grande orçamento lançados no verão.

Mas a televisão também é grande, de uma maneira que nem os filmes podem ser, distribuída por meio de centenas de canais e, cada vez mais, pela internet. Por enquanto ao menos, ela ainda está crescendo; novos programas de TV baseados em propriedades intelectuais não precisam necessariamente significar uma TV menos inovadora e idiossincrática. (E “Watchmen” e outras séries demonstram, de vez em quando, que a TV baseada em propriedades intelectuais também pode ser nova e idiossincrática).

Pense mais uma vez sobre de onde veio o Baby Yoda. "Star Wars", em todas as suas eras e em todos os seus formatos, é sobre uma galáxia tão grande e desordeira que, mesmo no ápice de impérios poderosos, há zonas livres, indomadas e onde não existe lei.

Talvez eu esteja errado. Talvez eu esteja tentando argumentar comigo mesmo para negar a dura verdade, porque é mais reconfortador e mais divertido deixar de me preocupar e simplesmente amar a criaturazinha verde. Talvez a Disney e seus concorrentes se provem capazes de conquistas ainda maiores que o Império.


Tradução de Paulo Migliacci

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