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The New York Times Cinema

Os números musicais do filme 'Cats' disputam posto de mais bizarro

Cautela, porque há alguns spoilers, e a escolha de seguir adiante, portanto, é só sua

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Kyle Buchanan
The New York Times

Enfim fizeram uma versão cinematográfica de “Cats”, o musical de Andrew Lloyd Webber sobre uma competição de eutanásia felina surpreendentemente entusiástica, em cartaz há décadas. O filme é bom?

Bem, permita-me dizer que os padrões habituais de bom e ruim não se aplicam ao espetáculo fantasmagórico que é “Cats”, a mais bizarra produção de um grande estúdio de Hollywood em décadas. 
O filme tem cara de uma sátira de US$ 100 milhões produzida pelo canal Adult Swim, e a visão daqueles demônios peludos criados com a ajuda de computadores farejando um ao outro e cantando bem alto suas biografias do Tinder jamais será fácil de aceitar. “Cats” é inexplicável, mas existe.

Em uma tentativa de desvendar o sentido daquilo, sugeri um artigo com um ranking dos números musicais do filme. O problema é que saí do cinema tão desconcertado que ainda não consegui reaprender funções simples como a matemática, e por isso segue uma lista dos números em ordem cronológica, mais contados que classificados. 

Cautela, porque há alguns spoilers. A escolha de seguir adiante, portanto, é só sua.

“Jellicle Songs for Jellicle Cats” - Depois de orquestrações tão antiquadas que esperei um solo de saxofone, as regras de “Cats” são rapidamente estabelecidas: uma dúzia de atores cobertos em pelo gerado por computação gráfica está a ponto de participar de uma competição parecida com “American Idol” envolvendo uma série de canções declarativas, o uso quase constante do adjetivo inventado “jellicle”, e frequentes tentativas de rapto praticadas por um gato com músculos peitorais gigantescos (Idris Elba). Quando termina a cantoria, Judi Dench decide qual dos gatos será executado.

“The Old Gumbie Cat” - Jamais imaginei que o diretor Tom Hooper fosse capaz de um pesadelo surrealista digno de Alejandro Jodorowsky, que desnortearia David Lynch e poderia levar até mesmo o deus das trevas, Cthulhu, a lançar um grito ancestral e admirado de “nehehehehehe”, mas quando a “gumbie cat” de Rebel Wilson, coçando a virilha, cumprimenta uma dúzia de ratos com rostos de crianças sobrepostos aos focinhos, minha primeira ideia é a de checar se pelo menos posso processar Anne Geddes [fotógrafa conhecida por fotos engraçadinhas de bebês].

“The Rum Tum Tugger” - Assistir a “Cats” é como descobrir uma nova e profana forma de filme pornô. A cada vez que aquelas pobres celebridades enfiavam as línguas em uma vasilha de leite, eu tinha certeza de que o FBI logo estaria invadindo o cinema. Sobretudo durante o terceiro número musical, com Jason Derulo como Rum Tum Tugger, o mais lúbrico dos gatos.

Castração jamais parece ser obstáculo, e uma cauda enervantemente ereta parece servir como menção a temas que ficam bem distantes da classificação de censura do filme. Um dia, haverá todo um ramo da psicoterapia destinado a pessoas que assistiram a “Cats” jovens demais, e cada sessão começará com o terapeuta pedindo: “Por favor, fale-me sobre Jason Derulo”.

“Bustopher Jones” - É o número de James Corden, e eu gostaria de dizer que a coisa mais ousada em “Cats” é que não cortaram nenhum de seus improvisos.

“Mungojerrie and Rumpelteazer” - Eis uma questão crucial que deveria ter sido resolvida em algum momento durante a pré-produção: qual o tamanho desses gatos? Há momentos em que eles parecem tão enjoativamente gigantescos que até um veterinário faria o sinal da cruz, mas aí você chega a essa sequência, na qual a prataria da casa os faz parecer minúsculos e usar uma gargantilha de pérolas é peso demais para os felinos.

“Old Deuteronomy” - Envolta em mais casacos de pele do que J. Lo em “As Golpistas”, Judi Dench por fim entra no ringue nesse número surpreendentemente comovente. Mas não contemple as bordas da tela, onde alguns dos figurantes exibem computação gráfica seriamente inacabada. Eles se parecem menos com gatos e mais com aquilo que aconteceria se alguém desse um desconto em um curso de Photoshop para aquela mulher que tentou restaurar o afresco de Jesus.

“Beautiful Ghosts” - Em lugar de falar sobre essa nova canção, composta por Taylor Swift, permita-me contar o trauma formativo que sofri ao ver “Cats” aos nove anos. Foi minha primeira experiência de teatro musical, e me deixou completamente desconcertado. Minha confusão em seguida se tornou algo muito pior quando um dos gatos apontou o dedo em minha direção, um menino franzino e crédulo na audiência, e ciciou: “Ele não acredita em gatos ‘jellicle’!” A plateia se voltou em minha direção, enquanto aquele adulto lambia as patas no palco, e eu jurei que um dia me vingaria. Será que o dia chegou? De qualquer modo, linda canção, Taylor.

“Gus: The Theatre Cat” - Mais de metade do filme já passou quando Ian McKellen subitamente aparece, e é tão genuinamente maravilhoso —divertido, pungente, e felino de uma maneira que enfim parece correta— que é lícito pensar: “E se o filme todo tivesse sido feito assim?”. Será que poderia haver uma versão que funcionasse integralmente, em lugar de um fiasco da telona que sirva basicamente como uma manobra tributária para lavar US$ 100 milhões? Jamais saberemos.

“Skimbleshanks, the Railway Cat” - Sem ofensa a Steven McRae, o bailarino australiano que interpreta Skimbleshanks, mas o que se ganha por usá-lo no papel se perde na oportunidade de usar mais um ponto de interrogação da cultura pop como parte do elenco. “Cats” é o tipo de filme que pede que Derulo cafungue no pescoço de Dench e encoraja Swift a postar fotos de McKellen no Instagram. Skimbleshanks deveria ter sido interpretado por Jennifer Lopez ou Baby Yoda.

“Macavity” - Introduzida por sintetizadores malignos que parecem saídos de um filme de John Carpenter, Swift chega usando saltos altos, e expõe seios humanos, como os gatos fazem. Ela canta uma ode ao personagem de Idris Elba e depois dopa todo um palco de gatos com uma lua em quarto crescente que brilha sedução. 

“Mr. Mistoffelees” - Senti mesmo um pouco de atração pelo gato mágico ou àquela altura já tinha distorcido meus receptores a ponto de me levar a pedir o Sonic do videogame em casamento? Na metade da canção percebi o quanto era espantoso que Eddie Redmayne tenha conseguido evitar ser escalado para o papel, ainda que ele saiba cantar, tenha trabalhado com Hooper duas vezes, e esteja sempre disposto a se humilhar nas telas.

“Memory” - Foi corajoso da parte de Jennifer Hudson encarar a canção mais famosa de “Cats” e passar 75% dela chorando pelo nariz. A maior praticante da arte de soluçar com as narinas, Viola Davis, certamente a colocou em uma lista de vigilância do governo.

“The Addressing of Cats” - Depois que chega ao seu clímax emocional e parece ter atingido seu final dramático, o filme continua, por puro despeito, como a faixa escondida de um álbum que a maioria das pessoas não ouvirá, ou uma cena pós-letreiros em um filme da DC. Judi Dench encara a câmera e tenta nos reconduzir ao estado normal ao contar ainda mais coisas sobre gatos. 

Tradução de Paulo Migliacci

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