Osesp executa a 'Nona Sinfonia' de Beethoven cantada em português em projeto global

Na despedida da regente Marin Alsop, orquestra busca aproximar o clássico dos dias atuais e da cultura brasileira

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São Paulo

Arthur Nestrovski estava há seis meses relutando em traduzir a “Ode à Alegria”. Foi numa caminhada matinal, repentinamente, que chegou ao embrião do texto que será cantado pelas 104 vozes do coral da Osesp a partir desta quinta (12).

“Queriam fechar o acordo, mas pedi que esperassem, que me deixassem tentar. Mas, depois, até que foi rápido”, diz o diretor artístico da orquestra. “Você escreve em uma semana mas, de certa forma, demora a vida toda para escrever aquilo.”

Jairo Malta

A apresentação do poema de Friedrich Schiller em português —pela primeira vez— é um dos atrativos do especial Todos Juntos: Uma Ode Global à Alegria. Parceria de Marin Alsop, regente titular da Osesp, com o Carnegie Hall, de Nova York, o projeto propõe levar a “Nona Sinfonia” aos cinco continentes em comemoração aos 250 anos de Beethoven.

Ao longo de 2020, Alsop vai reger a “Nona” nos Estados Unidos, África do Sul, China e Austrália, entre outros países, a começar pelo Brasil, entre quinta (12) e domingo (15), na Sala São Paulo. As apresentações marcam sua despedida como regente titular da Osesp.

Além de traduzir a “Ode” para línguas locais, o projeto prevê a criação de diálogos da “Nona” com a cultura de cada país. “Queria achar um contexto que desse coerência para a música brasileira que vai ser tocada entre os movimentos da sinfonia”, diz Nestrovski. “Foi pensando na contemporaneidade da ‘Ode’ com a escravidão no Brasil que me veio a ideia de que a música tinha que ter a ver com isso.”

Nas apresentações paulistanas, a “Nona” vai ser entremeada por um trecho de “Cabinda - Somos Todos Pretos”, peça de 2015 do baiano Paulo Costa Lima, e um adágio inédito da carioca Clarice Assad.

“[As peças] vêm no meio da ‘Nona Sinfonia’ fazendo uma conexão”, diz Costa Lima. “É como se parasse a narrativa um pouco e apontasse na direção das nossas obras.”

A parte de Assad faz alusão a “Alegria, Alegria” —“clássico manifesto antiautoritário”, segundo Nestrovski—, de Caetano Veloso. Já “Catinda” é resultado dos estudos de Costa, que desde os anos 1990 se dedica à rítmica afro-brasileira.

É um “painel de negritudes baianas e brasileiras e o resultado da interação com as matrizes brasileiras”, diz o compositor. As principais influências vêm do candomblé, mas se ampliam às “muitas Áfricas que existem na Bahia”.

 

“Usei uma técnica que funcionou como uma espécie de tecido conjuntivo, a partir de círculos intervalares, com a construção de seres a partir de intervalos crescentes ou decrescentes”, diz. “Os acordes são feitos com essa lógica, mas acabam absorvendo lógicas distintas dentro dela.”

A inserção de “Catinda” ajuda a trazer a “Nona” ao nosso contexto, refletindo as misturas que resultaram na sociedade brasileira, e sua capacidade de absorver pluralidades.

“Somos educados temporalmente a partir da África”, diz Costa. “E isso implica diretamente em como o corpo se move, como pensamos o movimento —daí as consequências em dança, em samba.”

Alinhadas a Beethoven e Schiller, as peças de Costa e Clarice seguem os ideais iluministas que inspiraram o mundo democrático moderno ao trazer uma busca por união. Mas, para Costa, o discurso não esbarra no nacionalismo.

“Somos uma sociedade desigual, onde os dominantes não podem ensinar ética”, diz. “Os dominados, só quando se libertam, podem falar de ética. Minha obra reconhece, homenageia e mostra que ali dentro existe a ética de um coletivo brasileiro utópico."

Essa visão utópica de humanidade, baseada em igualdade e justiça, para Nestrovski, ficará mais evidente com a “Ode” em português. Afinal, mesmo sendo uma das obras mais famosas da história, nem todos conseguem acompanhar o texto, cujo original é em alemão.

 

A “Nona” foi uma das primeiras sinfonias a ter canto, reflexo da importância das palavras para a obra. Por isso, o diretor da Osesp acredita numa experiência quase inédita.

“Beethoven percebeu que, para [atingir] o sentido mais alto, ele precisava de palavras, de cantores e deste poema. Vai ser o impacto de ouvir a ‘Nona’ de fato, quase como ouvir pela primeira vez.”

Ode à Alegria
Friedrich Schiller [1759-1805]
Versão de Arthur Nestrovski

Oh, glória!, me diz que nos move.
Outro tom, outro segredo
Glorioso caminho além!

Glória! Glória!
Alegria, alegria
Filha do divino em nós
Abre as portas do destino
E entre a humanidade, após!
Teu apelo vê reunido
O que era dividido em vão,
Homens e mulheres, todos
São agora irmã e irmão.

Quem já foi amigo de um amigo
Sabe o bem que faz,
Quem já foi o amor 
    [de um ser amado
Encontr’uma outra paz.
Quem já teve 
    [um’alma no mundo,
A calma no fundo do esplendor;
Quem não teve, chora agora
A dor da vida sem amor.

Alegria vem do céu, do chão,
Do sol, do mar, de um som;
Quem do bem e quem do mal
Igual recolhe o mesmo dom.
Vêm de quem os beijos e o vinho
E ao fim do caminho 
    [um par só seu?
Mesmo o verme vive a vida
E o querubim 
    [que está  com Deus.

Vou, vou, como teus sóis
Girando no firmamento;
Vão, amigos, contra o vento
Com a alegria de um herói.

Num abraço, multidões!
Mundo inteiro, um beijo só!
Amigos! Muito além do céu
Vive sempre um Pai de todos.
Não te ajoelhas, multidão?
Mundo: vês teu Criador?
Busca muito além do céu!
Sobre o sol, pra sempre, vive.

Uma Ode Global à Alegria

  • Quando Qui. (12) e sex. (13), às 20h30. Sáb. (14), às 16h30. Dom. (15), às 16h
  • Onde Sala São Paulo, pça. Júlio Prestes, 16, Campos Elíseos, São Paulo
  • Preço Ingr.: R$ 55 a R$ 230. Ensaio aberto nesta qui., às 10h; R$ 15
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