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Cinema

'Uma Mulher Alta' subverte convenções do cinema russo de guerra

Sua escolha para representar a Rússia na disputa por vaga na categoria de melhor filme internacional no Oscar não surpreende

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Luis Felipe Labaki

Uma Mulher Alta

  • Quando Estreia nesta quinta (12)
  • Elenco Viktoria Miroshnichenko, Vasilisa Perelygina, Andrey Bykov
  • Produção Rússia, 2019
  • Direção Kantemir Balagov

“Uma Mulher Alta” talvez seja uma tradução elegante demais para o título original “Dylda”, apelido da protagonista Íya (Viktória Mirochnitchênko). Nas legendas em português, a “dylda” é chamada pelos demais de “grandona”, algo um pouco mais próximo do termo russo.

Este é o segundo longa-metragem de Kantemir Balágov, de 28 anos, e o segundo a ser premiado na seção Un Certain Regard do Festival de Cannes. Com extensa carreira internacional, sua escolha para representar a Rússia na disputa por uma vaga na categoria de melhor filme internacional no Oscar não surpreende.

Balágov, hoje o mais notório ex-aluno do diretor Aleksándr Sokúrov, decidiu tematizar a participação feminina na Segunda Guerra após ler “A Guerra Não tem Rosto de Mulher” (2013), de Svetlana Aleksiévitch, obra que apresenta relatos íntimos de cidadãs soviéticas que viveram o conflito.

Mesmo partindo de um roteiro original, o filme compartilha do espírito do livro, e a definição de Aleksiévitch para essa desconhecida “guerra feminina” se aplica ao trabalho de Balágov: “não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana”.

Acontece que “Uma Mulher Alta” não se passa durante a guerra, mas nos meses seguintes a seu fim, e esse é seu aspecto mais interessante. Trata-se de um filme sobre traumas, tanto os que permanecem quanto os que são gerados ao longo de difíceis períodos de transição.

O Dia da Vitória, afinal, não apaga todas as sequelas. O primeiro som que ouvimos é um dos motivos centrais da obra: o gemido sufocado da jovem Íya, que periodicamente entra em um estado de estupor, incapaz de qualquer reação. Não à toa, ela dirá estar “vazia por dentro” —frase que não soaria estranha na boca das demais personagens.

Muito tem sido dito a respeito da fotografia do filme (assinada por Ksênia Seredá, de 24 anos), que conjuga uma câmera instável, próxima aos rostos, com a insistência em tons de ocre e verde —uma paleta curiosamente próxima à de "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", porém de efeito e sentido oposto. Mas o desenho sonoro do filme também deve ser elogiado: é bom notar como, no lugar de uma trilha musical reiterativa, ganham importância dramática os ruídos e sons do ambiente, com destaque para os programas radiofônicos.

Na trama, acompanhamos o trabalho de Íya como enfermeira em um hospital de Leningrado. Ela cuida ainda do filho de Masha (Vassilíssa Perelyguina), sua companheira de front. Uma crise da doença de Íya, porém, terá consequências trágicas que desencadeiam mudanças na sua relação com a amiga.

E este é um filme principalmente sobre a complexidade dessa relação, que oscila entre amizade, amor latente e abusos. Com personagens femininas protagonizando e movendo a história e homens em papeis secundários e fragilizados (servindo também de raro alívio cômico), “Uma Mulher Alta” subverte convenções do cinema russo de guerra, como ao transformar o clássico momento do retorno do marido-soldado à casa em um tenso encontro entre as duas jovens.

Mas aquilo que parecia permitido no contexto excepcional da guerra, incluindo novas configurações familiares, vai se modificando não apenas como consequência do sofrimento concentrado das personagens —um tanto repetitivas, em alguns momentos— mas também conforme elas são impelidas ao retorno a uma suposta “normalidade”.

Nesse sentido, é difícil não encarar uma fala de Másha sobre constituir uma “família ‘normal’, um pai e uma mãe” como uma estocada irônica dirigida ao mundo de hoje e a certas padronizações disfuncionais que vão sendo estabelecidas —mesmo em tempos de paz.

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