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The New York Times

Ano de 2019 teve boom de processos judiciais no mundo da música pop

Nova onda que traga astros pop ao tribunal é perigosa, pois copiar nem sempre é ruim

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Jon Caramanica
The New York Times

O ano passado foi excepcionalmente ativo, incomumente ridículo e indubitavelmente preocupante, em termos de processos judiciais na música pop.

Em agosto, depois de determinar que “Dark Horse”, uma canção trap muito genérica de Katy Perry, havia tomado algumas coisas de empréstimo a “Joyful Noise”, outra canção trap muito genérica, do rapper cristão Flame, um júri concedeu a Flame e aos demais queixosos US$ 2,8 milhões, ou R$ 11,4 milhões, em indenização. (Perry recorreu da decisão.)

Em outubro, o Yellowcard, um grupo emo de terceira linha que está inativo, processou Juice WRLD em busca de US$ 15 milhões, ou R$ 61,2 milhões, em indenização, pelo que entende serem semelhanças entre um dos maiores sucessos dele, “Lucid Dreams”, e um dos não sucessos da banda, “Holly Wood Died”. Depois da morte do rapper, em dezembro, a banda anunciou que manteria o processo.

Nos dois casos, a suposta conexão musical é tênue, na melhor das hipóteses. Mas esse é o tipo de queixa que vem ganhando empuxo desde a decisão do caso “Blurred Lines”, em 2015. Naquele processo, um júri concedeu ao espólio de Marvin Gaye uma indenização de US$ 7,3 milhões, ou R$ 29,3 milhões —posteriormente reduzida a US$ 5,3 milhões—, depois de determinar que a canção de Robin Thicke, Pharrell Williams e T.I. tinha coisas demais em comum com “Got to Give It Up”, de Gaye. Foi uma decisão absurda, e também assustadora. Um músico agora pode não só ser responsabilizado judicialmente por apropriação, intencional ou não, mas também pelas fontes de inspiração a que recorre.

Isso representa, em resumo, uma péssima notícia para os astros pop e os produtores e compositores que os ajudam a criar sucessos. Essas pessoas agora se tornaram alvo de processos judiciais frívolos baseados em afirmações nebulosas, bem como em uma completa e deliberada ignorância de como a música pop é feita na realidade.

O pop inova ocasionalmente com uma grande virada de estilo, ou com a chegada de alguém que está fora do sistema e ganha fama rapidamente (um exemplo é Lil Nas X). Mas o mais frequente é que se movimente como uma espécie de inconsciente coletivo. Um passo evolutivo raramente é trabalho de uma pessoa que trabalhe de forma isolada. Ele costuma ser apenas um tijolo a mais acrescentado a centenas de outros.

Originalidade é uma trapaça —a história da música pop é uma história de quase sobreposições. Ideias raramente emergem em completo isolamento. Em estúdios de todo o mundo, músicos, produtores e compositores estão tentando inovar, ir um passo além da posição atual da música, trabalhando com as mesmas peças. Não deveria causar surpresa que parte daquilo que eles criam soe semelhante ao que outras pessoas estão criando —e também ao que outras pessoas criaram no passado.

A ideia de que isso sirva de base a processos judiciais é uma virada na trama. Cada canção gravada se beneficia daquilo que a precedeu, quer se trate de uma ideia melódica, de um motivo lírico, de um ritmo cantado, ou de uma textura percussiva. Uma análise forense de qualquer canção encontraria toda espécie de DNA preexistente.

Um “troll” de direitos autorais explora esse fato ao buscar transformar a influência inevitável em processos judiciais nada generosos, e em muitos casos altamente frívolos. E levando em conta o quanto o veredicto do caso “Blurred Lines” provou ser lucrativo, ele se tornou a base sobre a qual processos quanto à originalidade de criação serão conduzidos, daqui em diante —se uma canção trouxer nem que uma pontinha de possível empréstimo (e quase todas têm), o empréstimo pode ser cobrado.

Isso inviabiliza a tese de que copiar tem algum valor, ou de que ideias duplicadas existem. Também dá a entender que toda cópia é igual —tanto a forma brutalmente antiética da prática quanto o acontecido entre Leibniz e Newton. Isso deixa de lado a distinção entre apropriação e eco, ou, ainda pior, presume que todo eco seja apropriação. Ignora o longo contínuo de retornos do pop a abordagens sonoras, melodias, batidas e progressões de acordes do passado. Exige que cada canção seja completamente distinta de todas as demais que a precederam, uma regra absurda e, em última análise, inaplicável.

O que resta na esteira dessa decisão é um clima de medo. Em alguns casos recentes, já se pode perceber uma postura preventiva, como por exemplo quando Taylor Swift conferiu um crédito de parceria à banda Right Said Fred por uma cadência em “Look What You Made Me Do” que lembrava o sucesso “I’m Too Sexy”. Ou o rápido acordo a que Sam Smith chegou com Tom Petty por supostas semelhanças entre “Stay With Me” e “I Won’t Back Down”. Determinar se algo foi de fato tomado de empréstimo não parecia importar, nesses casos; o potencial de que surja uma percepção de apropriação bastou para instigar a adoção desses arranjos.

Nessas situações, a canção vista como fonte era popular —era possível argumentar que, mesmo que não tenha havido influência direta, houve influência ambiental. A lei de direitos autorais não faz distinção entre cópia consciente e inconsciente, o que significa que, mesmo que seja possível estabelecer a distinção entre apropriação clara e apropriação inconsciente, ou entre apropriação e influência paralela, essa distinção talvez seja irrelevante, exceto em termos de determinar o valor das indenizações.

No entanto, casos como esses são a exceção. A maior parte das acusações apresentadas nos últimos anos estende os limites da credulidade.

Um cantor e compositor chamado Steve Ronsen acusou que um trecho de “Shallow”, de Lady Gaga e Bradley Cooper, da trilha sonora de “Nasce uma Estrela”, derivava de uma de suas canções, “Almost”, e ameaçou um processo.

The Weeknd foi processado por um trio de compositores —Brian Clover, Scott McCulloch e William Smith—, segundo os quais a canção “A Lonely Night” tinha sido copiada de “I Need Love”, uma composição deles que nunca foi lançada, escrita mais de uma década atrás.

O grupo Migos foi processado pelo rapper M.O.S., que afirmou que o título de sua canção “Walk It Like I Talk It”, gravada mais de dez anos antes, foi usado em uma faixa do grupo (o processo foi rejeitado).

Miley Cyrus está sendo processada pelo cantor jamaicano Flourgon, por conta da letra de sua canção “We Can’t Stop”.

Ed Sheeran foi alvo de diversos processos; um desses processos, por um trecho de “Shape of You” supostamente tomado de empréstimo ao trabalho de um cantor chamado Sam Chokri, levou à suspensão dos pagamentos de royalties sobre aquela canção.

Mas em quase todos esses casos, o escopo da suposta violação é tão pequeno e tão genérico que a ideia que fica é a que um elemento básico do trabalho de composição agora está aberto a disputas.

Talvez essas queixas sejam legítimas. Pode existir uma leve probabilidade de apropriação. “Truth Hurts”, de Lizzo, que chegou ao primeiro lugar das paradas de sucesso, traz entre suas bazófias mais repetidas uma frase que ela retirou de um tuíte, e pela qual nenhum crédito foi atribuído até que dois compositores que trabalharam com ela na sessão que rendeu o verso contestado assumiram publicamente o crédito pela frase. Lizzo respondeu com o anúncio de um processo que busca retirar deles o crédito como coautores, e, além disso, confere crédito ao autor do tuíte original.

Às vezes essas disputas envolvem determinar quem tem permissão —literal ou social— para tomar coisas de empréstimo, e de quem. “Dark Horse”, de Katy Perry, foi uma tentativa de absorver o trap, um gênero de música que fica bem fora de sua zona de conforto. Em certo sentido, o processo de Flame, de forma alguma o único músico a ter usado uma batida parecida, representou uma espécie de imposto sobre a apropriação cultural.

Ou talvez Perry pudesse ter obtido um resultado mais parecido com o de Ariana Grande, cuja canção “7 Rings” chegou ao topo das paradas de sucesso mas teve sua originalidade contestada por muita gente, especialmente por uma cadência associada a 2 Chainz ou Soulja Boy.

No caso em questão, Grande já havia cedido 90% de seus royalties à Rodgers & Hammerstein Organization (a canção traz trechos de “My Favorite Things”, de “A Noviça Rebelde”). Mas depois de uma conversa com 2 Chainz, os dois decidiram colaborar em um par de canções. De modo parecido, uma conversa telefônica para esclarecer as coisas levou a uma solução rápida e amigável de uma disputa entre a Three 6 Mafia e Travis Scott.

Os ecos usados por Grande e Scott eram homenagens intencionais. Especialmente no hip-hop, os artistas frequentemente incorporam fragmentos de canções anteriores como uma espécie de piscadela ou agradecimento a um predecessor. Mas a depender de quem esteja fazendo a homenagem, as coisas nem sempre correm bem.

Em 2014, Drake citou letras de Rappin’ 4 Tay, um veterano do hip-hop da região de San Francisco, que não só não se sentiu homenageado como decidiu cobrar publicamente US$ 100 mil, ou R$ 408,3 mil, em direitos de Drake. (Este não tinha pagado a fatura, até o final do ano passado.)

Se trabalhos ecoados passarem a ser tratados como apropriação sempre, composições, créditos e pagamentos que remontam não só aos anos 1970 e 1980 mas aos tempos de Robert Johnson, da família Carter e de Chuck Berry e os Last Poets estarão em questão —royalties perpétuos por inovações que mudaram a música.

A ideia de que exista um ponto de origem passível de determinação do qual uma ideia sonora tenha surgido é romantismo. Mas canções são muito mais que românticas, hoje —são ativos financeiros, e ativos perpétuos, aliás. Veja o boom recente no mercado de direitos autorais sobre canções. Confira as listas do royaltyexchange.com, onde os interessados podem fazer lances para adquirir frações de direitos sobre canções. Ou a montagem de catálogos imensos no setor de edição musical, por empresas como a Kobalt e a Merck Mercuriadis.

Estratégias como essas são o equivalente a apostar em todos os números da roda de roleta. Ser dono de uma parcela dos direitos de uma canção que venha a fazer parte de um grande sucesso pop pode valer milhões de dólares.

É um sistema que encoraja a má-fé e a aposta em premissas improváveis. Júris formados por não especialistas em música não estão equipados para tomar decisões em casos que tendem a girar em torno de depoimento de musicólogos contratados pelas partes rivais. Talvez seja necessária uma solução melhor: um painel de arbitragem, com adesão de todas as grandes gravadoras e editoras de música, no qual as reivindicações sejam adjudicadas por um júri de pessoas do ramo.

O sistema certamente teria poupado trabalho ao Led Zeppelin, que está envolvido em um caso de direitos autorais sobre “Stairway to Heaven” contra o inventariante do cantor da banda Spirit, um grupo psicodélico da década de 1960. O caso, ainda mais tênue do que o de “Blurred Lines”, vem se arrastando desde 2014 e prosseguirá em 2020.

Mas “Blurred Lines” pode ter destino parecido. No final do ano passado, Pharrell Williams, o produtor da canção, deu uma entrevista na qual descreveu seu trabalho na canção de maneira diferente da que havia feito em seu depoimento no processo. Poucas semanas depois, o espólio de Gaye apresentou uma moção que o acusava de perjúrio e pedia que o juiz reconsiderasse o veredicto do caso. Ao que parece, US$ 5,3 milhões, R$ 21,6 milhões, não bastam para comprar juízo.

Tradução de Paulo Migliacci

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