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Apesar da ameaça de Trump, atacar sítios culturais em guerras é ilegal

Convenção da Unesco determina que monumentos culturais nacionais são patrimônios globais protegidos

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Jason Farago
The New York Times

As guerras e insurgências que devastaram o Oriente Médio nos últimos dez anos não apenas resultaram em mortes e deslocamentos em número tremendo como também geraram um deserto de destruição cultural, reduzindo a escombros os portões assírios de Níneve, a Grande Mesquita de Aleppo e incontáveis outros tesouros antigos e modernos.

Neste último fim de semana o comandante-chefe americano, atropelando-se para conter as consequências do assassinato do general iraniano Wassem Soleimani, declarou no Twitter que “se o Irã atacar qualquer americano” os Estados Unidos retaliarão explodindo uma lista de 52 sítios iranianos que, segundo ele, são “importantes para o Irã e a cultura iraniana”. Historiadores, juristas e democratas como a senadora Elizabeth Warren chamaram a atenção para o fato de que converter sítios de importância cultural em alvos constituiria um crime de guerra. O próprio secretário de Estado Mike Pompeo, falando na televisão americana na manhã do domingo (5), fez questão de deixar claro que “o povo americano precisa saber que cada alvo que atacarmos será um alvo legítimo”.

Mas Trump reafirmou que enxerga a cultura como alvo legítimo. “Eles têm permissão para usar bombas nas estradas e detonar nosso pessoal”, disse o presidente a jornalistas no jato presidencial. “E nós não podemos tocar os sítios culturais deles? Não é assim que funciona.”

Não obstante as ameaças de Trump, o secretário de Defesa, Mark Esper, excluiu explicitamente na segunda-feira (6) a possibilidade de ataques a sítios culturais no Irã em resposta a quaisquer possíveis ataques iranianos.

Há uma razão por que o Pentágono destacou esse ponto: a destruição seletiva de monumentos da antiguidade é indiscutivelmente um crime de guerra. O instrumento legal mais relevante é a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (Convenção de Haia de 1954), adotada para prevenir o tipo de saque de obras de arte realizado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Entre outros pontos, a convenção declara que os países devem “abster-se de qualquer ação retaliatória contra bens culturais”. O Senado americano ratificou a convenção em 2008, com o apoio da administração Bush. Atos de guerra desse tipo obviamente também violariam a Convenção da Unesco sobre o Patrimônio Mundial, que determina que monumentos culturais nacionais também fazem parte do patrimônio global protegido.

São questões legais de relevância atual. Em 2016 o Tribunal Penal Internacional, do qual os EUA ainda não fazem parte, concluiu seu primeiro julgamento bem-sucedido por crimes de guerra culturais, quando um extremista malinês confessou-se culpado de ter demolido uma mesquita na cidade antiga de Timboctu.

Em 2017 o Conselho de Segurança da ONU afirmou que “lançar ataques ilegais contra sítios e edificações dedicadas à religião, educação, arte, ciência ou fins beneficentes ou contra monumentos históricos pode, sob determinadas circunstâncias e conforme a lei internacional, constituir crime de guerra”. A resolução foi adotada por unanimidade, e o embaixador que representou a administração Trump destacou que esse tipo de “devastação gratuita” frequentemente era obra do Estado Islâmico, da Al Qaeda e do Taleban.

Mas a Convenção de Haia e os esforços da Unesco têm sido insuficientes para estancar a maré global de destruição cultural –quer seja na antiga Iugoslávia nos anos 1990, no Afeganistão e Cáucaso na década de 2000 ou, mais recentemente, na Síria e no norte do Iraque. Nos anos 2010 huve um cataclismo medonho de destruição de sítios muçulmanos e pré-islâmicos nessa região, às vezes como dano colateral e em alguns casos como atos intencionais de guerra. E é essa a pilha de escombros que Trump —soando mais como um criminoso do Estado Islâmico que como o líder da maior força militar do mundo— ameaçou esta semana fazer crescer.

Parte da destruição mais repugnante foi das ruínas de Palmira, cidade antiga no deserto sírio, onde combatentes do EI explodiram templos e decapitaram o diretor de um museu. Como vários arqueólogos destacaram na época, o EI destruiu sítios culturais não apenas para satisfazer uma convicção jihadista extremista, mas como provocação intencional. Assassinar uma pessoa ou uma centena de pessoas não é o bastante para alguns; assassinar a história causa outro tipo de destruição.

O Irã é rico em tesouros da antiguidade. Quando Trump articulou sua ameaça, o que me veio à mente foi a cidade pré-islâmica de Persépolis, capital da Pérsia dos Aquemênidas, com suas ruínas colossais de colunas e estátuas de touros barbados. Perto de Persépolis há o túmulo de Ciro, construído no século 6 a.C., contendo os restos mortais de um governante que conquistou a maior parte da Ásia ocidental.

As obras-primas islâmicas incluem a belíssima mesquista do xeque Lotfallah, em Isfahan, construída no tempo dos safávidas, e a Mesquita Cor-de-Rosa de Xiraz, cujos vitrais enchem o recinto de cores. E nenhuma lista de sítios culturais iranianos importantes pode deixar de incluir criações modernas como o Mausoléu de Avicena, em Hamadan, dedicada ao maior polímata da Idade de Ouro islâmica.

Diretores de museus como o Metropolitan Museum of Art, em Nova York, e o museu Victoria & Albert, em Londres, repudiaram as palavras de Trump. “Ameaçar sítios culturais iranianos seria reduzir os valores ocidentais aos dos fanáticos do Estado Islâmico”, disse Thomas P. Campbell, diretor dos Museus de Belas Artes de San Francisco.

Eu diria mais: não são os valores “ocidentais”, mas os globais que são aviltados com ameaças como essas, e o que corre perigo não é apenas a cultura iraniana, mas a cultura mundial. Entretanto, enquanto os secretários de Defesa e de Estado insistem que as leis precisam ser respeitadas, Trump lamenta o fato de que “eles” podem fazer o mal, mas “nós” não podemos. Ele próprio já expressou claramente que valores de qualquer tipo não são o que está em questão.

Enquanto eu ponderava as ameaças de Trump, me lembrei de um romance: “À Espera dos Bárbaros”, alegoria enxuta que o escritor sul-africano J.M. Coetzee lançou em 1980, durante os anos do apartheid. É a história de uma operação militar lançada por um império envelhecido e temeroso. No livro de Coetzee, os verdadeiros bárbaros não são os insurgentes –são os homens que estão no poder.

“Não teremos aprendido nada, até o final”, diz o narrador no final. “No íntimo de todos nós parece haver algo granítico e ao qual é impossível ensinar qualquer coisa.”

Um bárbaro é alguém que olha para a cultura e não enxerga nenhuma beleza. Um bárbaro olha para uma mesquita ou uma mamoa e sonha apenas em provocar dor.

Tradução de Clara Allain
 

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