Descrição de chapéu The New York Times

Era pós-shopping escancara a tomada de controle da sociedade pelas empresas

Com o declínio dos complexos comerciais, o American Dream, um destino no pico do capitalismo, ascende

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Amanda Hess
The New York Times

Certa manhã no começo de dezembro, saí do escritório em Manhattan, fiz uma viagem de ônibus de 20 minutos até Nova Jersey e aproveitei algumas descidas de esqui antes do almoço. Eu não esquiava há 15 anos. Parece que eu só precisava que a montanha viesse até mim.

É aí que entra a Big Snow, uma pista de esqui interna que contém 5,5 mil toneladas de “neve real”, caída não das nuvens, mas do topo de um armazém no qual a temperatura é de dois graus negativos.

Quando comecei a deslizar, me senti invadida por memórias sensoriais de infância: sobrancelhas congeladas, uma roupa de esqui áspera, a sensação de liberdade ao guardar os bastões sobre os braços e voar montanha abaixo, com meu pai logo à minha frente. Isso durou 30 segundos, que foi o tempo necessário para que eu chegasse ao fim da pista.

Com cada viagem na cadeira de esqui de volta ao topo, a sensação era a de que eu estava viajando em uma caixa de aço gélida e lenta. E quando a experiência terminou, me vi não em um pavilhão de esqui, mas em um shopping vazio.

A Big Snow fica dentro do American Dream, um shopping center de 270 mil metros quadrados e tão ambicioso que abandonou a definição “shopping center”. Prefere ser identificado como “um destino sem rivais para estilo e diversão” e uma “coleção incrível de experiências únicas”.

Perto do anel viário de Nova Jersey, nasceu o pós-shopping center. Mais de metade do espaço do American Dream é dedicado não ao varejo, mas ao entretenimento. O centro psíquico da vida social americana deixou de ser comprar coisas e passou a ser senti-las.

Depois de 15 anos em desenvolvimento, as atrações do projeto estão enfim começando a funcionar, conectadas por redes de vastos corredores desocupados. Além da Big Snow, existe um rinque de patinação no gelo, um parque temático da Nickelodeon e um punhado de lojas, incluindo uma dedicada apenas a doces, chamada It’Sugar.

As promessas para o futuro incluem um parque aquático da DreamWorks; um Legoland; uma praça de alimentação da Vice; um parque KidZania no qual há um avião comercial em tamanho real; um campo repleto de coelhos vivos.

Os espetáculos chegaram bem em tempo. O não-shopping center de US$ 5 bilhões (cerca de R$ 20 bilhões) está sendo inaugurado em um momento no qual dizem que os shoppings estão morrendo. Um exército de previsores de tendências decidiu que a geração millennial preferiria gastar dinheiro com experiências do que comprando coisas.

A imaginação do varejo foi transposta para o Instagram e lojas fechadas foram ocupadas por “experiências pop-up” com o objetivo de monetizar as selfies. Com o declínio das lojas de departamento, o que ficou foram shoppings fantasmas, complexos que já não dispõem dos centros de gravidade que atraíam os moradores das cidades, e sobrevivem na forma de memoriais.

Enquanto isso, os incorporadores do American Dream —o conglomerado canadense Triple Five— acreditam que a força gravitacional do projeto atrairá milhões de pessoas da região, do país, do planeta.

O American Dream pode estar vendendo experiências, mas o shopping center sempre foi uma experiência. As compras eram simples fingimento; estar lá sempre foi grátis —da mesma forma que o flâneur de Baudelaire vagueava por Paris, convertendo galerias em uma forma de poesia.

O pano de fundo comercial do shopping center oferecia a fantasmagórica sensação de que nós mesmos estávamos nos tornando mercadorias, uma perspectiva que podíamos abraçar ou rejeitar.

Na cultura pop, o shopping center sempre foi o marco central da alienação. Foi de lá que os zumbis de “Despertar dos Mortos” saíram em busca de carne humana, e era lá que os jovens indolentes de “Barrados no Shopping” se reuniam.

Foi lá que Tai teve sua experiência de quase morte em “As Patricinhas de Beverly Hills”, quando rapazes a seguraram de cabeça para baixo num terraço. Foi no shopping center que as hierarquias sociais de “Picardias Estudantis” e “Meninas Malvadas” ficaram expostas, e foi lá que, quando estava na escola, eu me esgueirei para dentro de uma loja Abercrombie & Fitch como se estivesse vasculhando o armário de uma menina popular.

Foi no shopping que os Estados Unidos entregaram o controle de suas praças públicas ao setor privado, permitindo que os seguranças reinassem. Era o destino perfeito para o psicodrama americano. O que o American Dream oferece é alienação com algo mais. Tudo que costumava existir do lado de fora —toboáguas, parques de diversão, pistas de esqui— agora fica do lado de dentro.

E cada atração é a versão mais extrema possível do que quer que ela seja. Quando saí da pista de esqui e mapeei meu curso pelo shopping, fui acompanhada por um sujeito do departamento de relações públicas que recitou todas as realizações do projeto. A Big Snow é a maior pista de esqui interna do Ocidente.

O parque da Nickelodeon tem a montanha-russa mais íngreme; o da DreamWorks, quando inaugurado, terá a maior piscina com ondas. O shopping center também ostenta “a primeira atração de minigolfe do ‘Angry Birds’ da América do Norte’ e a It’Sugar, ‘a maior loja de doces não vinculada a um fabricante’.

Um shopping center novo pode ser bem parecido com um shopping center morto. As atrações ativas do Dream são limitadas o bastante para que, em uma quinta-feira de dezembro, e mesmo com Papai Noel na casa, o lugar estivesse praticamente deserto. Os escorregadores de água estão cobertos por lonas empoeiradas; os coelhos eram bonecos, substituindo os reais.

Havia alguma coisa de esclarecedor em visitar esse monumento à experiência em um momento no qual não havia pessoas lá para experimentá-las, não havia rostos a se abrirem em sorrisos ou pulsos a acelerar. Não havia praça de alimentação, como se as raras figuras que circulavam pelos corredores não necessitassem de sustento humano.

Em cada corredor havia um segurança, protegendo coisa alguma. Em lugar de lojas, as paredes estavam decoradas com painéis intermináveis mostrando imagens de animais e de objetos mundanos.

O lugar todo é vulgar, o que eu por acaso aprecio. Na entrada da It’Sugar há uma réplica de 18 metros de altura da Estátua da Liberdade feita de balas de goma. Ela segura um pirulito em lugar de uma tocha. Na porta ao lado desse espetáculo apavorante fica o parque da Nickelodeon, uma fábrica de nostalgia cujos temas incluem Bob Esponja. Assim que cheguei, entrei sem querer na montanha-russa com a maior inclinação do planeta.

A engenhoca nos conduziu chacoalhando até o teto e depois parou um pouco ao lado de uma janela que oferecia um panorama convidativo de Manhattan, antes de embarcar em sua descida de 121,5 graus. Agarrei-me ao meu cinto de segurança e chorei de medo. Senti-me como Tai em “Patricinhas de Beverly Hills”, chocada por um shopping center que tinha acabado de conhecer.

O que significa comprar uma experiência? Não é a monetização da vida, exatamente, mas a simulação de seus extremos. Para mim, o Nickelodeon Universe conjurou o espectro da morte. Um DJ na Big Snow anunciou o início do “inverno interminável”. A Estátua da Liberdade para Comprar Doces representa uma espécie de apocalipse de significado.

Eu senti tantas coisas naquele lugar. Na entrada da Big Snow há um “passeio de gôndola”, na verdade um vestíbulo imóvel no qual você assiste a um vídeo de instrução. Em uma sequência chocante em desenho animado, um narrador entusiástico revela que Big, o mascote da pista, um abominável homem das neves engraçadinho, se mudou para Nova York em busca do sonho americano. Mas logo começou a sentir muita saudade do lar, presumivelmente o Himalaia. Por isso ele construiu pessoalmente aquela pista de esqui. Agora Big só vê sua família na tela do celular.

É uma história comovente de profunda alienação, um dos filmes mais comoventes que vi este ano. Como Las Vegas ou as cidades do Arizona decoradas para terem cara de “Velho Oeste”, o artifício do sonho americano é tão artificial, seus excessos capitalistas tão excessivos, que o momento prece revelador, de alguma forma. Como escreveu o crítico David Hickey sobre Las Vegas, certa vez, “o que fica escondido em outros lugares aqui existe em visibilidade cotidiana”.

Não, não é um shopping center. E uma obra performática que rumina a respeito da tomada de controle sobre a natureza e a sociedade pelas grandes empresas. O nome –American Dream– é tanto perturbador quanto absolutamente correto.

Tradução de Paulo Migliacci

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