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Censura a filme do Porta dos Fundos afronta a Constituição

Tribunal de Justiça faz argumentação jurídica tão frágil quanto uma folha de papel

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Quarenta páginas. Essa é a extensão da argumentação jurídica do Tribunal de Justiça do RJ para, nesta quarta-feira (8), censurar o episódio de Natal do Porta dos Fundos veiculado pela Netflix. Ao fazê-lo, TJ-RJ afronta a Constituição Federal. Mesmo tratando-se de decisão preliminar, passível de ser revogada em breve, representa um retrocesso na proteção à liberdade de expressão em um país que hoje flerta com autoritarismos.

Salta aos olhos que ainda foram necessárias 40 páginas para dar aparência de sustentação a uma argumentação jurídica tão frágil quanto uma folha de papel.

Erra o TJ-RJ ao presumir que estamos num caso de conflito entre liberdade de expressão artística, de um lado, e liberdade religiosa e proteção do culto, de outro. Se conflito houvesse, estaríamos diante de uma situação que demandasse ponderar (juridiquês para relativizar) a liberdade de expressão. Não é o caso

Para que a censura pudesse ser legalmente viabilizada, a Constituição Federal deveria ter dado alguma margem de interpretação para tanto. Sem esta margem, fazê-lo é ato inconstitucional. Nas instâncias em que a Constituição proíbe censura, ela o faz de maneira categórica: diz proibir “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” no artigo 220 e assegura a livre expressão artística “independentemente de censura ou licença” na lista de direitos fundamentais do seu artigo 5.

Ainda mais errônea é a postura tutelar a que se arroga o TJ-RJ. Argumenta que a “divulgação e exibição da ‘produção artística’ são mais passíveis de provocar danos mais graves e irreparáveis do que sua suspensão, até porque o Natal de 2019 já foi comemorado por todos.” Nada na lei brasileira arroga a desembargadores o poder de tutelar o que vemos ou produzimos artisticamente, como se fossem protetores da castidade do sentimento de toda uma população. Mesmo o Marco Civil da Internet, de 2014, explicita a vedação à censura, e exige prova de “dano irreparável ou de difícil reparação.” Não é o caso.

Preocupa, ainda mais, o pressuposto às margens da decisão: de que existe um direito geral de religiões, representado pela organização católica autora da ação, a não serem ofendidas. Não estamos diante de um caso de crime de intolerância previsto na lei ou ações de indenização por ofensa à honra individual de alguém. Não cabe aqui falar em um direito geral a não ser ofendido, quando isso significa censura inconstitucional.

Pela ordem jurídica atual, pluralismo democrático pressupõe a convivência de críticas. Lá na década de 1970, a Corte Europeia de Direitos Humanos já consagrava que liberdade de expressão não significa apenas falar o que agrada aos outros, mas também aquilo que pode chocar alguém. Se assim não fosse, inexistiria liberdade alguma, em especial no contexto de sátira. Basta que religiosos que se sintam ofendidos não vejam o episódio. Basta que produzam uma resposta a ele. Em nada o episódio, goste dele ou não, diminui a liberdade religiosa, igualmente importante juridicamente.

Não é de hoje que o TJ-RJ pratica censura. Em dezembro de 2019, mandou retirar do ar entrevistas jornalísticas com pacientes da Santa Casa de Misericórdia do RJ sobre erros médicos. Caminha, portanto, na contramão da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a quem o TJ-RJ tem o dever de respeitar. “O regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito a voz”, decidiu o Presidente do STF de maneira enfática em setembro de 2019, quando da censura à feira de livro fluminense.

Sempre tive curiosidade por juízes em regimes autoritários ou quase autoritários. Dos juízes no apartheid na África do Sul ao nosso STF em plena ditadura, sempre tive curiosidade de saber como regras jurídicas, quando interpretadas, podem dar sustentação ao invés de reverter injustiças pela força da razão.

Lembro aqui da censura na ditadura militar, como relata Laura Mattos no livro “Herói Mutilado: Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura”. Ao menos ali, explicitava-se a censura à presença de homossexuais com todas as letras, expondo o horror da censura.

Nem isso a decisão do TJ-RJ tem a dignidade de fazer: chama censura de remédio “mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã.” Por meio do eufemismo jurídico acovarda-se chamar o ato do que ele é: censura.

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