Francês que trocou Paris por São Paulo relata como é ser negro e LGBT em disco

Loïc Koutana ganhou fama com suas performances na noite paulistana e também trabalha como modelo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O cantor, performer e modelo Loic Koutana

O cantor, performer e modelo Loic Koutana Gleeson Paulino/divulgação

São Paulo

Em um dia no segundo semestre de 2015, Loïc Koutana caminhava pela rua Oscar Freire em direção à USP, onde assistia às primeiras aulas do mestrado de comércio internacional. Um fotógrafo o parou na rua e perguntou se ele era modelo, ao que ele respondeu que não.

“Tem um casting para a [marca de roupa] Ratier. Quer participar?” Foi assim que o imigrante francês —à época recém-chegado a São Paulo para estudar e viver com o namorado— se iniciou na moda brasileira. Nos anos seguintes, ele faria uma série de editoriais e campanhas, além de desfilar na São Paulo Fashion Week.

Alguns meses mais tarde, enquanto Koutana dançava em uma balada de música eletrônica na praça do Patriarca, a cantora e produtora da festa Mamba Negra Laura Diaz se aproximou e disse a ele que o queria como parte do grupo musical Teto Preto, encabeçado por ela. 

Koutana entrou para a banda de música eletrônica como bailarino, começando ali uma trajetória que o levaria a se apresentar em vários países, além de se tornar referência em performance na noite de techno.

Foi uma mistura de acaso e vontade que levou este parisiense a optar pela artes em detrimento a uma vida de escritório que seu diploma, concluído metade na Sorbonne e metade na USP, poderia ter lhe dado.

“Talvez eu sonhasse secretamente com isso e então atraí essas coisas de alguma forma”, diz à reportagem, em entrevista em seu apartamento no centro de São Paulo, cenário dos vídeos que grava para seu canal no YouTube, no qual ensina receitas, dá dicas amorosas e fala sobre autoestima.

Mas modelar para importantes estilistas nacionais e excursionar pelo mundo com a banda não era o suficiente para um “criativo que está sempre conectado atrás de referências”, segundo seu marido, Raphael Lobato. Aos 25 anos, Koutana está em vias de lançar seu primeiro disco como cantor, “Ser”, previsto para sair até março e no qual adotou a alcunha de L’Homme Statue (o homem estátua).

Enquanto gravava o álbum, ouvia Rincon Sapiência, Linn da Quebrada, Elza Soares e Baco Exu do Blues (trabalhou com os dois últimos), além do som atmosférico de King Krule e Frank Ocean. As sete faixas do disco serão “a oportunidade de contar a minha história e de contar o que um jovem negro LGBT passa”, incluindo temas como amor livre, medo, empoderamento, ciúmes e família. 

Com produção do DJ e sócio da festa ODD Pedro Zopelar, “Ser” foi composto e gravado nos últimos 12 meses em São Paulo. Sobre um instrumental de bases eletrônicas com levadas de R&B e jazz, Koutana mostra versatilidade vocal ao cantar as próprias letras, alternando francês, inglês e português.

Explorar diversas vias profissionais na arte foi uma escolha mas também uma necessidade, diz o artista, preocupado com os cortes orçamentários na cultura. “Isso me alertou para o fato de que, se quero viver de arte no longo prazo, vou ter que me desdobrar em performance, no YouTube, como bailarino e como cantor.”

A censura que rondou o meio artístico em 2019 não lhe afetou diretamente, mas ele chama de “censura implícita” o fato de a Teto Preto nunca ter sido convidada para programas de TV ou grandes festivais.

Como um negro homossexual no Brasil, diz que sua masculinidade incomoda outros homens e que é chamado de Vera Verão quando sai na rua vestido como recebeu a reportagem: de blazer branco sem camisa, calça azul larga e brinco. “As pessoas gostam de estigmatizar um corpo preto”, diz.

Quando tinha oito anos, o pai de Koutana, natural do Congo, o levou com o irmão para a Costa do Marfim, terra natal da mãe. A ideia era viverem lá para entrarem em contato com suas raízes. Um ano mais tarde, a família foi obrigada a retornar para Paris, pois a escola na qual ele estudava foi bombardeada na guerra civil que assolou a nação africana entre 2002 e 2007.

Anos depois, por imposição da mãe, desistiu de participar de um teste para modelar para a grife japonesa Kenzo. O motivo: a seleção cairia no mesmo dia de um exame da Sorbonne, e deveria ser deixada de lado em uma família na qual “o seguro era fazer o caminho mais tradicional”, diz.

“Eu falei para ela: ‘Um dia serei modelo!’. E ela: ‘Tá, quando você for morar sozinho, mas não na minha casa’”, relembra.

Ele aterrissaria em Manaus —seu primeiro contato com o Brasil— durante a Copa do Mundo de 2014. Veio tanto para conhecer pessoalmente o brasileiro com quem trocava mensagens via Instagram há meses quanto para um estágio.

Voltou para a França três meses depois e seguiu se relacionando virtualmente com Lobato, à época repórter de política em um jornal do Amazonas. O romance engatou e, quase um ano mais tarde, em 27 de junho de 2015, Koutana mudou-se para São Paulo, matriculado no mestrado e com namorado brasileiro, com quem passou a morar.

 

“A gente glamouriza muito essa coisa de França, Espanha, Londres, Nova York, mas a gente esquece que tem muitas oportunidades no Brasil”, afirma, se dizendo emocionado. “Eu e meus amigos dizemos que a cidade de São Paulo é nosso escritório, ela proporciona coisas que eu nunca poderia ter tido na França.”

Talvez o espírito inquieto de Koutana seja melhor expresso pelos versos de “Do Not Tell Me”, última faixa que está programada para sair antes do lançamento do disco.

“Do not tell me what I have to do/ Do not tell me with whom I can be/ Do not tell me what I have to wear” (não me diga o que tenho que fazer/ Não me diga com quem posso estar/ Não me diga o que tenho que vestir), diz a letra.

“Acho que as pessoas vão se identificar”, conclui.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.