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Maurice Sendak, autor de 'Onde Vivem os Monstros', desenhava o ilógico

Definir o clássico livro ilustrado seria desonesto com a estranheza, os simulacros e a sofisticação do ilustrador

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Roger Mello

Vejo o menino Max recém-coroado rei das “coisas selvagens”. E ele foi coroado pelas criaturas, depois de brincar com elas durante três páginas duplas. Agora está entediado, vestindo roupa de lobo.

Depois da algazarra, as criaturas foram postas pra dormir pelo próprio Max. Entediado, entende? Existe muito de Shakespeare nesse tédio, como a humanidade entediada após uma guerra, após uma travessura do tamanho da sua rua, após uma mentira do tamanho do mundo. É talvez o tédio antes de uma virada.

É preciso olhar atentamente os traços, além das palavras do livro de Maurice Sendak. O tédio de Max olha fora do livro, olha para quem lê? Um dado percebido na imagem, não no texto, afinal Sendak não deixaria que um repetisse o outro.

O livro "Onde Vivem os Monstros" surgiu da ideia de um título. Um título que acabaria por mudar. “Onde Estão os Cavalos Selvagens” era o antigo nome. Sendak apresentou à editora, que comprou a ideia. 

Bom, agora faltava todo o resto do livro. Então, começou a desenhar esboços de cavalos, mas achou que não estavam bons e decidiu mudar o título —“Onde Estão as Coisas Selvagens” (“Where the Wild Things Are”, no original).

Coisas poderiam ser desenhadas da maneira que ele quisesse. Ótimo, porque poderia desenhar o inusitado (ou o ilógico, como gostava de dizer).

Maurice Sendak nasceu no Brooklyn nova-iorquino, filho de poloneses, uma costureira e um contador de histórias. Seus traço e narrativa têm referências da arte moderna do Little Nemo, de Winsor McCay. 

Também encontro Edward Gorey em Sendak, com o inusitado, o não dito, o traço preto drapeando as cores, o jeito de compor o cenário, as ameaças, as janelas, as árvores loucas, a companhia do terror. O mesmo que faria plena a existência de Tim Burton.

O título da versão brasileira acabou confinando a força poética das coisas selvagens a um reducente “Onde Vivem os Monstros”. É evidente que “onde estão” não é simplesmente “onde vivem”, e “coisas selvagens” supera em muito o apelo da palavra “monstros”.

Veja: “monstro” não aparece uma vez sequer na história. A ideia de criatura é uma decisão visual. Um elemento narrativo sofisticado que conversa com o olho de quem lê.

Tenho visto análises muito boas sobre as coisas selvagens —mas eu jamais reduziria o deleite e a complexidade da criação de Sendak a uma leitura unívoca, um ponto de vista, apenas ao jogo de poder, à força política, à relação entre mãe e filho (é mesmo uma relação entre mãe e filho?), à dosagem do que há de selvagem em nós num contexto sedentário, à fuga para a atualidade do livro que antevê crianças com déficit de atenção, hiperatividade, criatividade profusa.

Talvez não seja nada disso. Definir seria totalmente desonesto com a estranheza, com os simulacros, com a sofisticação do autor. Ler e ouvir Sendak revela sua filosofia original, dura, inesperada, lúcida, divertida. Sua admiração pelo objeto livro como um objeto gráfico plural a ser devorado. 

Maurice Sendak desenhava com a lupa, lembrando que lhe perguntaram se crianças não teriam medo dos monstros que criou. “Não terão, porque eu não tenho”, respondeu.

Roger Mello é escritor e ilustrador vencedor do prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil

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