Sentado num ponto de ônibus, um jovem melancólico se depara com uma ciclista tagarela. Ele se retrai, sem dar muita atenção às perguntas dela, e, quando acha que o incômodo está prestes a acabar, ela o surpreende e diz que o conhece.
O encontro move a trama de “Rapte-Me Agora”, dirigida por Cynthia Falabella e escrita por Ed Anderson, que estreia nesta sexta-feira (17) no Sesc Santo Amaro.
“Durante o intervalo de uma peça, uma pessoa me cumprimentou e eu não lembrava quem era. Ela provou que me conhecia, sabia até onde eu morava”, diz Anderson sobre a origem do espetáculo.
A montagem brinca com a ideia de modernidade líquida desenvolvida pelo ideólogo polonês Zygmunt Bauman, na qual ele discorre sobre a rápida transformação e imprevisibilidade das relações.
A personagem Uma (Michelle Boesche), jovem entusiasmada, tenta de diversas formas convencer Outro (José Sampaio) de que eles se conhecem. Enquanto ela fala sobre disciplina, persistência e determinação, ele se apresenta como alguém perdido e desesperançoso, parte de “uma juventude que não vai mudar porra nenhuma”.
Conforme apresenta os personagens, o espetáculo traz lapsos de memórias, que de repente vêm à tona. O cenário simples se adapta de acordo com o período de tempo abordado.
A escolha da diretora Cynthia Falabella é na verdade uma tentativa de fazer o público refletir sobre as relações contemporâneas. “Espero que as pessoas pensem em toda essa modernidade, em como se relacionar hoje em dia e na importância de guardar as memórias”, diz.
Apesar de os personagens estarem inseridos em uma relação efêmera, desdobramento dos tempos atuais, ambos concordam que “a modernidade é insuportável”. Por isso, a peça recorre a elementos do passado, como fitas cassete e músicas dos anos 1980, mais especificamente clássicos da banda Legião Urbana.
A resistência em relação à tecnologia é bastante presente. Em tempos virtuais, Uma valoriza a presença física e a força do coletivo para buscar mudanças. “O texto traz essa discussão da tecnologia sendo o lugar do virtual e não mais do real”, afirma a diretora.
“É uma peça adulta, mas que aborda esse universo jovem, talvez de uma adolescência tardia e um pouco ingênua. Minha personagem tem esse olhar ‘Pollyanna’, acha que vai conseguir mudar o mundo”, diz a atriz Michelle Boesche.
Em contraponto, Outro parece ter aceitado a realidade, se encontra estático em um ponto de ônibus, enquanto Uma se movimenta com sua bicicleta.
“Ele espera uma coisa que nunca chega, tanto em relação ao ônibus, como em relação à sua memória.
Mas não faz nada para que isso mude, está em um limbo do qual não consegue sair”, afirma o intérprete do personagem.
A peça também passeia por temas considerados tabus, como aborto e automutilação, mas sua centralidade está na apresentação de uma juventude paradoxal e na luta pelas relações reais, cada vez mais esquecidas pela modernidade líquida de Bauman.
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