Regina Duarte assume órgão dominado por defensores de guerra cultural

Quarta pessoa a assumir a pasta da Cultura em um ano, a atriz vai enfrentar falta de pessoal e cargos vacantes

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São Paulo

A atriz Regina Duarte disse sim nesta quarta-feira (29) para o convite de Bolsonaro, deixando o título de noiva para assumir o casamento com o governo. Ela comandará a Secretaria Especial da Cultura. 

Ela assume uma nau de personagens excêntricos imbuídos da ideia de uma guerra santa no campo da cultura. Em pouco mais de um ano de governo Bolsonaro, a secretaria perdeu funcionários técnicos, como José Paulo Soares Martins, especialista em incentivos, exonerado há dez dias, e ganhou quadros que pregam valores religiosos e a luta contra o “marxismo cultural”.

Regina é a quarta pessoa escolhida pelo governo Bolsonaro para o comando do órgão, sucedendo Henrique Pires, que tinha experiência administrativa, Ricardo Braga, economista sem experiência na cultura, e Roberto Alvim, dramaturgo, autor de ofensas à atriz Fernanda Montenegro nas redes, hoje associado ao nazismo por ter copiado frases de Joseph Goebbels em um pronunciamento oficial.

A atriz Regina Duarte durante passagem por Brasília para conhecer a estrutura da Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro - Sergio Lima/AFP

Com o avanço de uma equipe afinada com a ala mais conservadora do governo, no campo da cultura e no dos costumes, a pasta também sofreu cortes significativos. Ainda não há definição para cargos importantes na Casa de Rui Barbosa, que teve um time de servidores antigos exonerados, nem dos comandos da Fundação Palmares e do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Em um ano em que perdeu o status de Ministério, a Cultura teve um dois maiores desfalques no quadro de funcionários. Durante o primeiro ano de mandato de Bolsonaro, enquanto esteve na pasta da Cidadania, a Secretaria Especial da Cultura teve mais de 80 servidores transferidos para outras áreas, segundo contagens no comando de instituições da própria pasta.

O órgão não informou o total de funcionários contratados hoje, mas estima-se que a perda represente algo entre 10% e 15% do total de empregados, gerando atrasos em atividades de planejamento e gestão.

Regina Duarte vai ter como um de seus primeiros desafios tentar recuperar esse time que a subpasta perdeu no ano passado, em remanejamento promovido pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra. A perda de servidores da Cultura se agravou porque a secretaria foi transferida em novembro para o Ministério do Turismo. Isso representou um afastamento físico entre os funcionários e a atual equipe da atriz. 

Na Ancine, o quadro de direção também está incompleto. A Agência Nacional de Cinema deveria ter quatro diretores mas opera com dois, sendo uma interina. 

O audiovisual é um setor estratégico na guerra santa contra o dito “marxismo cultural”. Regina pode ter como pivô da cruzada o pastor e colunista social Edilásio Barra, o Tutuca, atual chefe da Superintendência de Desenvolvimento Econômico da Agência Nacional de Cinema, que determinou a retirada de pôsteres de filmes nacionais de uma antiga exposição na sede da agência, e a diretora do Festival Internacional de Cinema Cristão, Veronica Brendler.

Os nomes de Tutuca e Brendler foram encaminhados à Casa Civil para que possam compor a diretoria da Ancine. A decisão depende de aprovação no Senado.

As pendências se acumulam, e falta por exemplo uma redação para o Plano Anual de Investimentos, necessário para direcionar R$ 700 milhões em investimentos no audiovisual, que deveria ter saído em maio do ano passado. Em dezembro, houve a emissão de um plano provisório. O definitivo sofrerá atraso.

Regina chega, ainda assim, como um perfil moderado, procurando jogar entre liberais e radicais. Posicionou-se contra a ideia de censura defendida por Bolsonaro e Alvim, mas ouviu pessoalmente do presidente seu discurso sobre o filtro contra pautas gays, por exemplo.

O conflito principal de Regina com o presidente é seu posicionamento contra a censura, embora tenha relações longevas com funcionários ligados a instituições religiosas que defendem filtros na cultura.

No Instagram, ela postou um vídeo contra o especial de Natal do Porta dos Fundos, em que Jesus é retratado como gay. Também publicou trecho de um programa da Rádio Jovem Pan em que um ex-participante do Big Brother Brasil esbraveja contra o que conservadores têm chamado de “marxismo cultural”, teoria considerada por muitos conspiratória, sobre uma imaginada estratégia da esquerda para direcionar conteúdos na indústria nas artes.

Regina é da turma de Janícia Silva, a Jane Silva, reverenda que chefiava a pasta da Diversidade e que foi alçada para o cargo de secretária-adjunta, número dois na hierarquia da Cultura. Um dia pós chegar a Brasília, esteve em uma reunião com a reverenda e com o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.

Jane entrou no lugar de José Paulo Soares Martins, herança do quadro composto por Temer, considerado um perfil mais liberal. Há um vídeo de Jane na internet no qual ela vai até a frente da Embaixada Palestina em Brasília para dizer que o PT financiou o terrorismo no Brasil.

“É daqui que o mundo terrorista do Brasil recebe todo apoio”, diz.

Jane surge na secretaria por influência de uma ricaça nascida no Vale do Jequitinhonha, Geralda Gonçalves, a Geigê, responsável pelas nomeações mais polêmicas na pasta. Foi Geigê quem indicou nomes como o de Letícia Dornelles para a Casa de Rui Barbosa, sem atentar para a falta de currículo acadêmico da atriz, uma reclamação levantada por estudiosos do direito, da literatura e da filologia.

Geigê também atuou para que Sergio Camargo, autor de declarações consideradas racistas, fosse nomeado na Fundação Palmares, e para que Dante Mantovani, que associou o rock ao satanismo, sentasse na cadeira mais alta da Funarte. Camargo caiu por determinação da Justiça.

A primeira vitória da turma liderada por Geigê representou ainda a queda da pasta do audiovisual de Ricardo Rihan, também ele considerado um nome forte e respeitado no setor.

O Audiovisual permanece sem cabeça. Sturm foi convidado para o comando da pasta, mas até hoje sua nomeação não apareceu no Diário Oficial da União. Considerado também um perfil técnico e, portanto, estranho dentro desse campo de batalha santa, ele enfrenta questões burocráticas. 

Em novembro, Alvim havia nomeado Katiane Gouvêa para esse mesmo cargo. Ela tinha participação na produção e divulgação de um dossiê que, em 2019, listou produções audiovisuais com perfil que o governo Bolsonaro deveria vetar. Até o humorista Tom Cavalcanti estava na lista.

Bolsonaro se baseou nesse documento para fazer um de seus ataques mais agressivos à área, tachando a série “Me Chama de Bruna” como pornográfica.

Gouvêa foi demitida depois que o governo constatou que havia irregularidades na prestação de contas de sua campanha nas eleições de 2018. Ela foi candidata a deputada federal pelo PSD. 

A bagunça tem desdobramentos mesmo entre os liberais. Martins, herdado do governo Temer, fazia oposição à nomeação de André Sturm. Para ser nomeado, Sturm precisa se desvincular de empresas que se dedicam ao setor cultural, entre elas o Cine Belas Artes, em São Paulo.

Sua nomeação também atrasou por causa do recesso de fim de ano e do escândalo que derrubou Alvim, com a divulgação do vídeo com conteúdo nazista.  

Martins também tinha divergência com Camilo Calandreli, secretário de Fomento e Incentivo à Cultural, nomeado por Alvim, criador do Simpósio Nacional Conservador de Ribeirão Preto, evento que recebeu Bolsonaro em sua edição do ano passado. Durante o evento, após fazer agradecimentos, o presidente disse: "aproveito para dizer que nós não podemos perder a guerra da informação".

Martins foi demitido durante o voo de Regina Duarte para sua primeira recepção pelo governo Bolsonaro em Brasília, na semana passada. Ele tinha uma reunião com a atriz agendada. Avalia-se que falaria demais.

Alvim, por sua vez, deve partir para os Estados Unidos, segundo divulgou pelos corredores do Ministério do Turismo, sem aferir uma finalidade especifica.

Alvim também teria dito a amigos que não tem muito mais o que fazer no país: está queimado com a esquerda, que atacou, com a direita e especialmente com a comunidade judaica.

Dois nomes que eram ligados a ele caíram nesta segunda: Marco Aurélio Franco era coordenador-geral de projetos especiais, e Alexandre Leuzinger, assessor da secretaria.

No meio dessa confusão toda, nenhum ministério publicou no Diário Oficial da União a exoneração de Roberto Alvim da Funarte, na qual ele assumiu seu primeiro cargo no governo antes de assumir a Cultura. 

Nem o Turismo e nem a cidadania explicaram a falta do documento, ainda que o dramaturgo tenha sido desvinculado e seu pagamento interrompido, como afirma a assessoria de imprensa da Funarte.

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