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Única maneira de ouvir Lizzo de verdade é por meio do corpo

Com oito indicações, cantora chega como uma das favoritas à cerimônia do Grammy, que acontece no domingo (26)

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Chris Richards
The Washington Post

Quer dizer que todos amam Lizzo?

Se isso é verdade, o motivo provavelmente é que suas canções incorporam os clichês e estratégias mais afirmativos do pop dos últimos dez anos. A música de Lizzo empodera como a de Beyoncé, reforça a autoestima como a de Lady Gaga e oferece um funk higiênico como o de todos aqueles sucessos de Bruno Mars.

Lizzo diz que deseja ser a Aretha Franklin de sua geração. Além disso, ela toca flauta. Tudo isso, cozido em fogo médio, resulta em alguma coisa como um Black Eyed Peas, mas de fonte sustentável.

Ela foi indicada a oito prêmios na 62ª edição do Grammy, que acontece neste domingo (26) em Los Angeles, e tem possibilidade real de vencer nas quatro principais categorias —canção, gravação e álbum do ano, além da de revelação. Isso representaria um recorde histórico, mas não surpreenderia tanto assim.

É difícil imaginar uma estrela pop que atenda às necessidades culturais atuais com uma hospitalidade tão agressiva. Numa era em que estamos sendo encorajados a investir em autoconfiança, autoestima, feminismo e positividade sexual —e ao mesmo a reinvestir no dogma utópico do pop—, as letras de Lizzo podem ser ticadas —com tinta purpurinada— como satisfazendo cada item da lista.

Mas existe sutileza em seu artesanato pop. Ela sabe como criar a sensação de que está forçando os limites sonoros sem na realidade chegar muito perto deles. Ela sabe como fazer com que um som bom o bastante pareça bastante bom. O que Lizzo oferece é música boa com uma boa mensagem, e pode ser até que o ouvinte sinta ser uma boa pessoa por gostar dela.

Que tipo de pessoa é Lizzo? Muita gente ponderou essa questão quando ela enfrentou turbulência nas redes sociais no ano passado, primeiro por um chilique em letras maiúsculas quanto a uma resenha menos que positiva recebida no site Pitchfork e em seguida por seu ataque pessoal no Twitter, com direito a citação do nome de um entregador de comida do serviço Postmates, por um erro no atendimento ao seu pedido.

Esses pequenos entreveiros digitais parecem ter distanciado ainda mais os fãs da cantora de seus críticos e, ao mesmo tempo, mantiveram Lizzo como assunto de muita conversa virtual —ainda que não muitas dessas conversas tratassem de motivos pelos quais as pessoas se interessariam por ela.

Um ouvinte que decida expor suas retinas a todas as manchetes berrantes sobre Lizzo ainda assim seria feito recordar, pelo resto de seu corpo, que o que Lizzo faz, em última análise, é música.

Levando em conta todas as referências às mensagens positivas sobre o corpo nas letras da cantora, faz perfeito sentido que suas duas canções mais persuasivas sejam temas que pedem que o ouvinte se sinta bem com seu ser corpóreo. O incentivo a que as pessoas se sintam bem a que ela dá destaque em suas letras é inconfundível mas se torna ainda mais satisfatório quando o ouvinte sente a mesma mensagem incorporada ao seu som.

Um exemplo é “Truth Hurts”, uma canção de revanche que chegou ao topo das paradas de sucesso e está indicada ao Grammy de melhor canção do ano. (Lançada em 2017, ela ainda assim pode disputar o prêmio deste ano, de acordo com as letrinhas miúdas do regulamento do Grammy.)

“Sim, tenho problemas com rapazes, sou humana afinal”, Lizzo diz no primeiro verso. “Mas eu resolvo rapidinho, é meu lado deusa”. Em termos líricos, ela talvez só esteja misturando poesia de ioga com jargão do rap do passado, mas, quando essa mistura ganha música, gera uma cascata de sentimentos genuínos.

A cadência descendente da canção cai com força, como o sujeito inútil que Lizzo está dispensando. Quando ela chega ao refrão, é possível sentir que tirou um peso dos ombros —e o ouvinte talvez sinta o mesmo. O refrão termina com um vocal sem letra, “bom-bom-bi-dom-bi-dum-bum-bay”, mas as sílabas fazem sentido. É o som da carga que ela vinha arrastando ao cair no piso da pista de dança.

Enquanto “Truth Hurts” obedece à lei da gravidade, o outro grande sucesso de Lizzo, “Water Me”, a desafia. A canção aparece na edição de luxo de “Cuz I Love You”, indicado ao prêmio de álbum do ano, e foi construída em torno de uma linha de baixo em estilo disco, que sobe, sobe e sobe sem parar. Lizzo faz o mesmo, levando sua voz ao limite superior e cantando “I am my inspiration!”. O baixo mais tarde despenca de volta à terra, para voltar a subir.

Não importa que resultado tenha a noite do Grammy, prepare-se para ouvir essa canção pelo resto de sua vida.

Isso já está acontecendo. Quando alguém dança ao som de “Water Me” em uma festa de casamento, sente os fatos da vida se assentando em escalas inclinadas, mas com o lado positivo superando o negativo.

Se a pessoa pedalar ao som dela em uma aula de “spinning”, “Water Me” pode bastar como motivação para encarar os altos e baixos de um passeio de bicicleta simulado. Mesmo que o ouvinte não esteja indo a lugar algum, a sensação será de que está. Uma canção pop encorajadora pode ser eternamente útil, em um purgatório eterno como aquele.

E isso provavelmente talvez seja aquilo que o Grammy mede melhor —não excelência, mas utilidade. Nossas canções pop mais onipresentes não são apenas decorações invisíveis pendendo do ar. Queremos que elas confiram uma aura de propósito àquilo que nos cerca, e os grandes sucessos de Lizzo fazem exatamente isso. Fazem com que atravessemos com sucesso nosso tempo na academia, no supermercado, no jogo de beisebol, no dentista.

Quando alguém ouve a linha de baixo de “Water Me” ascendendo continuamente no contexto de um comercial do Walmart, isso põe em ação uma espécie diferente de formação de autoestima. A canção se torna uma ode à confiança dos consumidores.

É quanto a isso que a cordialidade tamanho único de um imenso sucesso pop começa a causar desorientação. A boa notícia é que o tamanho único serve para cada ouvinte. A má notícia é que também 
serve para um comercial do Walmart.

E o que isso diz sobre a pessoa que gosta da canção? Talvez o ouvinte não deva se preocupar com isso. Talvez a única maneira de ouvir de verdade uma canção de Lizzo seja por meio daquilo que a pessoa não compartilha com ninguém —seu corpo.

Porque quando Lizzo faz música sobre amar inteiramente seu ser físico, ela está nos pedindo que ouçamos com nosso ser físico inteiro. O valor de sua música não pode ser resumido ao efeito de suas letras, quer sejam entendidas como mantras sagrados, quer como citações cotidianas de um calendário de autoajuda. O valor de sua música está na forma pela qual o baixo toca a medula óssea do ouvinte, está em como a melodia guia sua musculatura.

Numa cultura que está constantemente nos dizendo que nossos corpos são deficientes, a música nos lembra de algo para o qual eles sempre serão bons —ouvir uns aos outros.

Tradução de Paulo Migliacci

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