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Vida gay na era da 'pegação' permeia livro 'As Coisas', premiado pelo Sesc

Tobias Carvalho venceu láurea ao contar histórias da vida cotidiana sem pudor

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Porto Alegre

“Já deu um pouco de falar sobre aceitação, sabe? A gente está acostumado com esse tipo de narrativa. Meu livro aborda muito o negócio de que tu quer o sexo porque tu quer transar, tu precisa transar, meio que não importa com quem”, diz o escritor gaúcho Tobias Carvalho entre um gole de cerveja e uma mordida num pedaço de frango empanado.

A vida em torno de aplicativos de paquera para homens gays —como o Grindr— é descrita com honestidade em “As Coisas”, volume de contos que rendeu ao autor de 24 anos o prêmio Sesc de Literatura, concedido a escritores estreantes. 

Como parte da premiação, ele rodou 15 estados do Brasil e algumas cidades em Portugal falando a respeito da obra; agora, escreve um novo livro, sobre o qual não adianta detalhes.

 
“Olha as coisas que a gente faz para gozar, só a quantidade de tempo que o pessoal passa nos aplicativos só para gozar rápido. E não tem ninguém falando disso. Só tão mostrando as historinhas em que o pessoal casa e vive feliz para sempre”, diz um dos personagens do conto “Um Não Esquece o Outro”.

O repórter encontrou o autor no Workroom, seu bar preferido em Porto Alegre. O local é inspirado no reality “RuPaul’s Drag Race”, no qual drag queens competem para serem as preferidas da “Mama” RuPaul. 

Na visão de Carvalho, refletir sobre ser gay é falar sobre ser diferente. “Tem tantas coisas nas relações entre dois homens que são diferentes de relações hétero: a questão do ciúmes, a questão do sexo, a questão da própria monogamia. Se tu é gay, tu já nasceu fora do padrão, sabe?”

No palco do bar, a drag Rebu Rebeca imita de maneira debochada o discurso de menino veste azul e menina veste rosa da ministra Damares Alves. “Estão achando que vão nos tombar? Não vão. Ele liberou as armas, já cumpriu 99% das promessas de campanha”, incita a performer, em referência ao presidente Jair Bolsonaro. “Ele não! Ele não!”, grita a plateia.

 

O clima de “grande família”, nas palavras de Carvalho, é o que lhe faz gostar tanto do Workroom. A camiseta da banda The Strokes que veste e a tatuagem do Radiohead no braço esquerdo, mostrando parte da capa do disco “Kid A”, destoam das divas que bombam dos alto-falantes do lugar. 

Fã de futebol e torcedor do Grêmio, ele afirma também ser frequentador assíduo do local por querer entrar mais em contato com seu lado feminino. “Eu sou um gay muito masculino, eu acho. É o que os meus amigos me dizem.” 

É tentador confundir autor com personagem —à exceção de um único conto, gays efeminados não aparecem nas 23 histórias que são apresentadas pelo livro. Mas apesar de “As Coisas” ser escrito em primeira pessoa, Carvalho diz haver “zero” de autoficção em sua narrativa, para em seguida reconhecer que viveu algumas das situações que estão presentes no livro.

O escritor só mostrou a obra à família depois de ter ganhado o prêmio do Sesc. A láurea dava um aval externo à sua escrita, que não era levada a sério pelos familiares. Sua mãe ficou feliz com a premiação, que aguçou a curiosidade dos parentes. “Eles ficaram me perguntando o que dali era verdade, porque tinha essas migalhas de verdade. A minha mãe não gostou do conto da sauna, porque ela achou muito pesado.” 

Em “Sauna nº 3”, um rapaz de 25 anos conhece outro de 40 num aplicativo e ambos pegam um Uber, sob chuva, para se aventurar num clube de sexo. A certa altura da história, eles vão para uma cabine com um garoto de programa —e o narrador parece explodir de excitação. 

“Depois eu fiz os dois tirarem par ou ímpar para ver quem ia me comer primeiro, e o garoto de programa ganhou, mas eu já tava dolorido, e o guri era meio agressivo, não consegui aproveitar, melhorou depois, 
quando dei pro Roberto enquanto chupava o Rafael.”

 

A crueza das narrativas, desprovidas de análises, é um dos trunfos de “As Coisas”. Os personagens agem velozmente, como que movidos por uma ânsia. Quando não estão em busca de sexo, os rapazes ali retratados vivem um mal-estar difuso, que parece causado por uma impossibilidade de amar. 

Em “Água”, o protagonista tenta se matar no momento em que se vê apaixonado; em “Guion”, Sérgio fica prostrado numa cama ou foge para o cinema para evitar lidar com a crise de seu relacionamento com Luiz Henrique. 

A literatura de Carvalho foi comparada por críticos à de outros dois gaúchos, Caio Fernando Abreu (“li mas não foi uma mega influência para mim”) e João Gilberto Noll (“não tinha lido antes de escrever o livro”).

Carvalho diz sentir familiaridade com Noll, já que, conta, o romancista também usa uma linguagem despojada para construir personagens que se põem em situações sobre as quais não pensam a respeito.

Ele diz ainda que um dos elogios que recebeu dos jurados, entre os quais estavam os escritores também gaúchos Daniel Galera e Letícia Wierzchowski, foi o fato de seu livro não ser panfletário nem militante da causa LGBT. “Os personagens vivem as coisas e é assim que é”, finaliza.

As Coisas

  • Preço R$ 32,32 (144 págs.)
  • Autoria Tobias Carvalho
  • Editora Record
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