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A URSS era um Estado guerreiro, diz ganhadora do Nobel de Literatura

Em 'Meninos de Zinco', Svetlana Aleksiévitch narra derrota dos soviéticos no Afeganistão

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São Paulo

O livro da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch que sai agora no Brasil levou a autora aos tribunais. 

Um militar e a mãe de um oficial morto, cujos depoimentos ela incluiu em “Meninos de Zinco”, entraram na Justiça de Belarus, em 1993, em uma ação “em defesa da honra e da dignidade”. 

Enquanto a queixa da mulher foi rejeitada, a do soldado foi parcialmente acolhida.

O processo está documentado no capítulo final do livro da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015. Utilizando fartamente entrevistas com envolvidos, como em seus outros livros, a obra narra, em tons fortes e de denúncia, o pior trauma bélico da União Soviética: a Guerra do Afeganistão (1979-1989), cujo desfecho desastroso contribuiu decisivamente para o fim do regime comunista. O título se refere ao material dos caixões em que os mortos eram enviados para casa.

As forças armadas soviéticas invadiram o país vizinho para ajudar o governo comunista do país, que se encontrava em apuros. A intervenção se tornou um atoleiro, do qual o país saiu apenas em 1989, durante a perestroika de Mikhail Gorbatchov, após o exército perder 15 mil soldados.

Em “Meninos de Zinco”, Aleksiévitch documenta esse fiasco com grande vivacidade, incluindo depoimentos que falam do consumo de drogas pelas tropas soviéticas, da brutalidade do conflito, das mentiras contadas pelas autoridades a fim de atraírem mais recrutas para o front e da indiferença com que os ex-combatentes foram recebidos na inglória volta para casa.

Dentre os diversos depoentes, Tarás Ketsmur e Inna Galovnevna processaram a autora com acusações de que ela distorceu suas palavras.

“O que eu fiz rompe os fios fortes em que está assentado qualquer Estado autoritário: cumprimento do dever, morrer pela pátria, considerar a pátria e o Estado acima do indivíduo”, diz ela em entrevista à Folha, por telefone, de sua casa em Minsk, capital de Belarus, e em russo —língua em que a autora, nascida na Ucrânia, em 1948, escreve.

“Um livro antimilitar como ‘Meninos de Zinco’ suscita naturalmente resistência. Resistência do Estado, resistência dos militares. Eles vieram contra mim”, diz a respeito do processo. “Uma mãe perdeu o filho, e precisava de um herói. Era muito difícil para ela.”

O tema militar é constante na obra de Aleksiévitch: de seus livros lançados no país, dois enfocam a Segunda Guerra Mundial. “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher” aborda o conflito da perspectiva feminina, enquanto “As Últimas Testemunhas” adota o ponto de vista das crianças.

“Eu cresci em um país guerreiro. O Estado soviético era um Estado guerreiro. Fui criada em uma aldeia, logo depois da Guerra Patriótica [nome que se dá na Rússia à Segunda Guerra Mundial], ouvindo relatos terríveis do conflito. Tínhamos que nos preparar para a guerra”, afirma.

Ela também cresceu próxima a uma sólida tradição literária sobre o tema em seu país —como os contos de Tolstói sobre a Guerra da Crimeira ou o romance “Vida e Destino”, de Vassíli Grossman.

De qualquer forma, ela passa longe, muito longe, de qualquer exaltação do conflito bélico. “Cresci em uma geração que já resistia à guerra, que já era pacifista, eu diria”.

Suas palavras parecem encontrar eco no jovem cineasta Kantemir Balágov, 28, que declarou recentemente que “fazer um filme sobre a guerra é fazer um filme contra a guerra” e que seu longa “Uma Mulher Alta”, ambientado na Leningrado de logo depois da Segunda Guerra, foi inspirado no livro da autora sobre as mulheres no conflito.

Aleksiévitch elogia o filme de Balágov, embora veja pouca relação com seus próprios escritos. “Ele diz que meu livro o fez pensar sobre a guerra do ponto de vista feminino, mas ele encarou esse tema com olhos completamente diferentes, com os olhos de uma geração diferente.”

A produção cinematográfica recente em que ela se reconhece é a série “Chernobyl”, da HBO, baseada em seu livro “Vozes de Tchernóbil”, que retrata com contundência o desastre nuclear ocorrido na Ucrânia, em 1986.

“Parece-me uma série muito forte, que foi vista por milhões no mundo inteiro. Creio que isso é resultado de uma nova consciência ecológica”, diz. “Estou feliz porque isso aconteceu. Jamais um livro teria uma tiragem tão grande.”

Ela pretende utilizar sua popularidade para ajudar a fomentar a produção das escritoras. Para isso, anunciou que vai abrir em Minsk uma editora dedicada exclusivamente a mulheres. Mas ainda não dá um prazo.

“Será logo”, diz. “Publicar é complicado para as mulheres —a literatura que sai, historicamente, é 90% de homens”. 

Hoje autora consagrada, com livros publicados em 52 línguas e 55 países, ela se queixa dos problemas que enfrentou no começo da carreira por ser mulher. “Ajudou-me meu caráter forte. Mas, no início, quando era jornalista, o editor dizia: ‘Para que vamos contratar uma mulher, ela logo vai casar, engravidar, criar filhos, ficar muito tempo fora’.”

Para Aleksiévitch, editar autoras significa propagar outra forma de encarar a realidade. 

“É muito importante, hoje em dia, mostrar o olhar feminino. O olhar masculino já está aí, o feminino conhecemos muito pouco. Vi isso quando trabalhava em ‘A Guerra Não Tem Rosto de Mulher’. As mulheres abordam a guerra a partir de outros temas, outras palavras, outras dúvidas”.

Seu próximo livro vem ocupando-a há 20 anos. Com título inspirado em obra do autor russo Aleksandr Grin (18801-1932), “O Cervo Miraculoso da Caçada Eterna” fala de amor.

“Depois de escrever a história da utopia, do comunismo russo, pensei: O que mais é interessante? O que mais seria útil para as pessoas? E cheguei ao tema do amor, da morte, do tempo, da velhice. Agora estou trabalhando no livro sobre o amor”, diz.

Ela evita, contudo, dizer quando termina o trabalho. “Coleto material há muitos anos. O amor é um tema muito vasto e complexo”, define.

Além disso, ela se propõe a lançar um novo olhar sobre o tema, “graças ao qual o leitor veja o mundo de outro jeito, o mundo do amor, o mundo da velhice, o que é a morte. Essa é a questão essencial”.

Meninos de Zinco

  • Preço R$ 59,90 (368 págs.)
  • Autor Svetlana Aleksiévitch
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Cecília Rosas
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