Banda A Travestis aponta novos caminhos para o pagode baiano

Protagonismo de mulheres e relação com paredões pauta novidades de um dos gêneros mais populares do Nordeste

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São Paulo

Quando a cantora Tertuliana Lustosa nasceu, há 23 anos, o grupo É o Tchan vivia seu auge. A banda colecionava discos de platina e diamante com o que se convencionara chamar, especialmente no eixo Rio-São Paulo, de axé music. Mas, na Bahia, todo mundo sabia que aquela música era pagode baiano, pagodão ou simplesmente pagode —o estilo derivado do samba junino que se popularizou no fim dos anos 1990.

Hoje, Tertuliana é uma das revelações deste que é um dos mais importantes gêneros de música do Nordeste. Mulher trans à frente de um grupo enxuto —duas dançarinas e um produtor, algo improvável nas big bands baianas—, Tertuliana representa novas possibilidades dentro do pagode.

O hit “Murro na Costela do Viado”, de sua autoria, resume a ideia. Ele pode soar agressivo aos neófitos, as a ideia é ressignificar símbolos de gênero e do gênero. “Existe isso no pagode, o murrinho, é uma dança fácil de fazer”, explica ela. “E eu escrevi viado para colocar a gente como protagonista.”

pessoa com a mão na barriga
Tertuliana Lustosa, que lidera o grupo de pagodão baiano A Travestis - Sacra Produções/Divulgação

A proposta de Tertuliana já lhe garantiu, em pouco mais de três meses, o tão esperado convite para estrear no Carnaval de Salvador. Esta semana, A Travestis sobe aos trios da cantora Pabllo Vittar e das bandas La Fúria e A Dama, dois nomes incontornáveis da Bahia. “O pagode é o ritmo da favela, e toca na Bahia, toca no Piauí, no Maranhão, em Sergipe”, diz Tertuliana. 

Criada entre Salvador e Corrente, interior piauiense, Tertuliana se mudou para o Rio de Janeiro para cursar história da arte na Universidade do Estado do Rio de Janeiro quando tinha 18 anos.

Lançou-se como artista durante a faculdade, ora como poeta, ora como performer de projetos voltados à visibilidade trans. Como DJ Tertu do Vidigal, tocava em festas de funk e deu os primeiros passos na música.

Nada disso, nem o diploma, pareciam suficientes. “Como travesti, você dificilmente acha emprego fora da prostituição”, diz a artista. “Eu já me prostituí, mas, quando voltei a Salvador, virei camelô, e isso revolucionou minha vida.”

Graças ao comércio, Tertuliana fez sua primeira gravação —uma versão musicada de “olha o brigadeiro da lôra”, um dos seus bordões como vendedora de doces. Em pouco tempo, compôs mais faixas unindo a expertise da produção musical de funk a uma abordagem particular do pagode da Bahia.

Tertuliana hoje faz parte de uma leva de mulheres que vêm se destacando na cena do pagode, como as cantoras Allana Sarah, Rai Ferreira e Fernanda Maia, que também é percussionista da banda Afrocidade.

Algumas têm histórico de anos na música baiana, caso da Ex-The Voice Aila Menezes, mas somente nos últimos anos essas artistas conseguiram tomar o centro das atenções de um gênero que sempre teve homens como protagonistas —nomes como Xandy, do Harmonia do Samba, ou Igor Kannario, ex-banda A Bronkka e atual deputado federal pelo DEM da Bahia, são alguns dos exemplos.

“As mulheres não tinham essa visibilidade que têm hoje no pagode”, explica Helen Barbosa, professora da faculdade Dois de Julho e autora de estudos sobre o gênero. “Tem uma onda conservadora no país, mas, ao mesmo tempo, há lugares de resistência, e acho que isso tem sido potencializado.”

Para a pesquisadora, essa mudança confronta paradigmas do gênero que vão de letras à representação da mulher no palco. Se antes à mulher restava o papel de dançarina —também importante na formação do pagode—, agora ela também é agente principal de uma música vez ou outra acusada de sexismo.

“O funk e o pagode são tão machistas quanto qualquer outro espaço no Brasil, mas a diferença é que nessas músicas são os favelados que estão no topo, e disso ninguém gosta”, diz Tertuliana. “Ninguém ataca a MPB, onde existe tanto machismo quanto.”

Outro fator que aproxima pagode e funk é o uso de tecnologias digitais no desenvolvimento de uma indústria quase independente, como explica Helen. “Por um lado a internet democratiza a produção musical, mas, por outro, continua sendo rentável para os músicos funcionar na lógica da indústria fonográfica”, diz.

Nas engrenagens dessa mecânica estão empresas como a Sacra Produções. A agência soteropolitana tem, além d’A Travestis, mais quatro bandas no catálogo. Parece pouco frente aos enormes selecionados de produtoras de funk ou de sertanejo, mas o número esconde uma centena de instrumentistas, técnicos de áudio e estafe.

O operacional todo move bandas como o La Fúria, nome incontornável do pagode atual cujo cachê pode chegar a R$ 60 mil por show.

“O pagode na Bahia é como o funk no Rio ou em São Paulo”, explica Jorge Sacramento, fundador da empresa. “No final, todo mundo acaba ouvindo.”

Para alimentar esse consumo, Sacramento afirma que a produção deve seguir um modelo industrial. Em formatos de álbum, novos repertórios são lançados mensalmente em páginas como YouTube ou SuaMúsica. Versões, covers e novas composições recheiam os álbuns —que precisam circular, sobretudo nos paredões.

Esses carros munidos de muitos alto-falantes são, hoje, o núcleo de vários eventos musicais em bairros populares do Brasil. Se faz sucesso no paredão, a banda pode agendar shows em palcos cada vez maiores e chegar —quem sabe— aos cachês polpudos de festivais e festas de Carnaval.

“Com o paredão, você faz festa independente de banda”, explica Sacramento. “A La Fúria, por exemplo, é chamada de banda dos paredões.”

Para Tertuliana, o paredão é um elo fundamental na sua abordagem do pagode. Por um lado, ele some com o artista. “No paredão, o artista não é mais uma pessoa, e sim o objeto, e a arte contemporânea tem muito disso: a figura do artista desaparecendo.”

Por outro, ele é a plataforma de sucesso para reclamar visibilidade. “Não tem que ter mulheres no pagode, tem que ter mulheres estourando no pagode.”

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