Bienal de São Paulo expõe cicatrizes coloniais em edição que retoma verve política

Mostra e performance marcam início de exposição que durará mais e se espalhará pela cidade

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Ximena Garrido-Lecca posa diante da instalação 'Insurgências Botânicas', exibida em sua individual da 34ª Bienal de São Paulo Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

O compositor sul-africano Neo Muyanga chama a atenção dos atores, dispersos pelo auditório do pavilhão da Bienal, no parque Ibirapuera, para começar o ensaio. Pede desculpas pelo português limitado: “Vou falar na minha língua colonial”.

É em inglês, assim, que Muyanga explica a performance que os membros do coletivo de teatro negro Legítima Defesa encenam agora na abertura da 34ª Bienal de São Paulo, uma versão corrompida do hino de louvor “Amazing Grace”.

A canção, símbolo da solidariedade negra e muito associada às igrejas batistas americanas —uma de suas gravações mais famosas foi feita por Aretha Franklin numa dessas—, foi na verdade escrita por um ex-traficante de escravos britânico, John Newton, no século 18.

É esse paradoxo que Muyanga diz querer abordar na performance. Nela, os integrantes do coletivo simulam uma nau ao equilibrar uma gigantesca vela branca na rampa do pavilhão. Mapas das navegações e dados sobre a diáspora africana serão projetados sobre seus corpos, como palimpsestos.

No ensaio, os atores cantam no ritmo de um blues, articulando as vogais de modo a simular o que o sul-africano chama de uma “língua do fundo do oceano Atlântico”.

“Meu apelo é que não esqueçamos de onde as coisas vieram, e como chegamos até aqui”, afirma Muyanga, que em julho leva a apresentação para a Bienal de Liverpool, coprodutora da obra. “A história é mais complexa. E quero entender como nos inscrevemos nela.”

Essa busca por reescrever a história a partir de perspectivas parciais, cumulativas, parece contaminar toda esta edição da mostra, uma das mais importantes do calendário artístico nacional.

A começar pela peruana Ximena Garrido-Lecca, cuja individual, com início neste fim de semana, antecipa em quase sete meses a abertura habitual da programação.

Depois, em abril, será a vez da paulista Clara Ianni, acompanhada de uma performance do argentino León Ferrari. E, em julho, da americana Deana Lawson.

Enfim, em setembro, os trabalhos expostos reaparecem na mostra coletiva principal, de novo junto a uma performance, a inédita “A Ronda da Morte”, de Hélio Oiticica.

Além desses seis nomes, a Bienal já anunciou outros 22 participantes desta edição.

Eles também protagonizam individuais, mas em paralelo à coletiva, em 25 espaços espalhados por São Paulo —instituições que vão do Masp e a Pinacoteca a unidades do Sesc.

Outros 60 artistas, aproximadamente, completam a lista.

A ideia, explica Carla Zaccagnini, artista e uma das curadoras do time liderado pelo italiano Jacopo Crivelli Visconti, é que os visitantes articulem obras e seus autores a partir de um chão comum. “O público não chega aqui vazio e você ensina. É uma troca”, diz.

 

Segundo ela, as exposições que acontecem a partir de agora são apenas faíscas para uma discussão maior. Mas oferecem um vislumbre dos temas caros a essa edição, orquestrada em torno do conceito vago de “relações”.

No caso de Ximena Garrido-Lecca, são tópicos como heranças coloniais, a exploração da terra, transmutações da paisagem, e saberes ancestrais apagados.

Aventurando-se em diferentes campos do conhecimento, como botânica, arqueologia e engenharia, muitas de suas mostras se assemelham a verdadeiros laboratórios nos quais o público ora faz
parte dos experimentos, ora acompanha as transformações do espaço à medida que o tempo avança.

Uma das criações que ela mostra agora, por exemplo, é um jardim hidropônico de favas —numa exposição anterior, ela coletou as sementes manchadas da espécie e, resgatando a suposição de alguns arqueólogos de que teriam sido usadas como meio de escrita pela civilização moche, traduziu com elas o capítulo de um livro que ensinava os colonizadores a extinguir práticas religiosas pré-hispânicas.

Outra registra as frágeis construções de madeira e bambu que migrantes costumavam instalar em Pucusana, a uma hora de Lima, para reivindicar posse das terras.

A mesma região é retratada cinco anos depois num vídeo ao lado. Ali, no entanto, boa parte das estruturas desaparecem. A câmera sobrevoa um deserto riscado, linhas brancas de giz demarcando os lotes à venda.

Apesar dessa multiplicidade de interesses, as obras de Garrido-Lecca costumam repetir certos elementos:
terra, plantas, esteiras, tijolos, cobre. “Me interesso por materiais, são imbuídos de tantos significados. E, apesar do meu trabalho ser muito conceitual num certo sentido, gosto de pôr a mão na massa.”

Exemplos disso são dois muros que ela ergue no Pavilhão da Bienal. Um é uma espécie de barricada feita de barris de petróleo. Outro, uma parede de tijolos de adobe estampada com o logotipo desbotado do Proyecto País, um partido peruano que desapareceu.

O último parece falar diretamente sobre o Brasil, cujo lema do “país do futuro” também anda um tanto puído.

É um paralelo com a realidade nacional que também pode ser encontrado na performance de Muyanga. Afinal, mesmo que “Amazing Grace” não soe tão familiar aos ouvidos brasileiros, as alusões da obra ao tráfico negreiro são claras.

Os dois prometem um início elétrico para a Bienal. Sua última edição, organizada pelo espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, foi criticada justamente por dar as costas à efervescência de um país às vésperas 
das eleições presidenciais
. Agora, a preocupação transparece desde o título, retirado de um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, “Faz Escuro Mas Eu Canto”.

Questionada se retomar a voltagem política foi uma preocupação da equipe curatorial, Zaccagnini diz que seria impossível realizar uma bienal que não pensasse essas questões nos dias de hoje.

“É uma responsabilidade real. É um lugar de fala de muita amplificação e um monte de dinheiro público”, afirma.

A exposição deste ano tem orçamento de R$ 30 milhões. A Fundação Bienal não informa qual porcentagem do valor vem de leis de incentivo, embora neste ano tenham sido captados cerca de R$ 12 milhões para o funcionamento geral da instituição, segundo o portal do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura.

“Todos nós acreditamos que a arte pode fazer alguma coisa neste momento. Mas de que forma? É aí que estamos experimentando”, afirma Zaccagnini.

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