Coronavírus deforma paisagem de Paris e moda luta para manter desfiles

Primeira grande grife a desfilar na temporada francesa, Christian Dior endureceu críticas ao patriarcado

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Paris

Uma nuvem espessa estacionou em Paris agora que começaram os desfiles mais importantes da temporada internacional de outono-inverno 2021. Os temores de que o coronavírus mudaria a paisagem da capital francesa agora parecem fazer sentido no atual retrato do passado recente, quando salas de desfiles, ruas e lojas pareciam pequenas para tantos clientes e profissionais de moda chineses. Impedidos de viajar, eles sumiram.

Mesmo a garoa persistente, a sensação térmica de 1ºC e o engarrafamento angustiante, comuns a esta época do ano, não explicariam a um desavisado a baixa aderência dos fotógrafos de streetstyle, o sumiço das blogueiras asiáticas e a predominância de línguas latinas no furdunço pré-desfile.

Todo esse desarranjo parecia chuva passageira, mas virou tempestade no domingo (23), quando Giorgio Armani cancelou seu desfile horas antes do horário marcado e transmitiu pela internet o vaivém de modelos gravado em uma sala vazia –logo após o governo italiano limitar o acesso a cidades do norte italiano devido ao aumento no número de infecções e mortes causadas pelo vírus.

O espaço montado pela Christian Dior, primeira grande grife a desfilar nesta semana parisiense, estava lotado, mas dentro da caixa gigantesca construída no meio do jardim das Tuileries era notório o desequilíbrio étnico dos convidados, mais ocidentais do que nunca.

Já é fato que o Covid-19 puxará para baixo o faturamento das marcas de luxo, em sua maioria dependente do mercado asiático. O que resta, então, é segurar as pontas para manter os desfiles de pé com algum propósito. Nesse contexto, a estilista Maria Grazia Chiuri nem se esforçou para isso.

De mãos dadas com o coletivo francês Claire Fontaine, cujo trabalho espalha por espaços públicos obras que contradizem a visão masculina da sociedade, a designer aumentou o volume da crítica ao patriarcado comum às suas coleções.

Pendurados pelo espaço, luminosos de neon como “patriarcado=CO2” e “amor de mulher é trabalho não remunerado” pareciam colocar no mesmo plano o perigo do vírus em voga e a toxicidade do machismo. No piso havia uma versão da obra “Newsfloor” do coletivo, em que páginas de jornais foram pixeladas e reimpressas como um pedido para que a história fosse reescrita.

Se até pouco tempo Chiuri declamava em camisetas da Dior que “todos deveriam ser feministas”, agora ela aponta o dedo para o patriarcado com um garrafal “I SAY I” (ou, eu digo eu) colado na roupa e no título da mostra de artistas italianas que a grife abrirá a partir de março, em Roma.

Simples, as roupas não guardam o detalhismo de execução das coleções anteriores da estilista. Ela preferiu construir peças versáteis, como uma jaqueta inspirada no modelo “bar”, redondo nos ombros e acinturado como ampulheta, e calças jeans folgadas ao estilo dos libertários anos 1970.

Há mais elementos masculinos traduzidos para o repertório feminino da marca. Gravatinhas finas, xadrezes dos tipos vichy e príncipe de gales, visual roqueiro e até camuflados receberam o verniz de alta-costura que Chiuri evoluiu nos últimos anos na direção criativa da Dior.

Ainda há as transparências e os looks do tipo lingerie que fizeram sucesso na sua gestão, mas ela embala essas características ditas femininas em estruturas rígidas, cortes amplos como o da alfaiataria masculina e tecidos pesados.

Neste início de temporada deformada pela ausência de chineses, Chiuri desafia a moda a enfrentar o vírus do machismo, que, encubado por séculos, já matou e ainda mata mais do que este que circula causando arrepios na indústria.

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