Documentários sobre astros do pop no streaming seguem cartilha chapa-branca

Produções escancaram paradoxo de que quanto mais próximo chegam dos artistas retratados, menos têm a revelar sobre quem de fato eles são

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São Paulo

“Preciso conseguir a lista completa porque, nas categorias principais, você não está indicada”, é o que diz uma agente a Taylor Swift quando ela descobre que —assim como neste ano— não está indicada aos principais prêmios no Grammy de 2019. Cabisbaixa, ela responde que “tudo bem, tenho que fazer um disco melhor que esse”.

A cantora está falando de “Reputation”, álbum de 2018, no recém-lançado documentário “Miss Americana”. Swift está triste, mas sua resposta protocolar mais parece algo preparado com sua equipe do que a reação espontânea de alguém que, como ela própria diz, foi criada para buscar a aprovação de todos e acabara de descobrir que seu álbum não havia agradado à principal premiação da indústria.

Taylor Swift em cena do documentário Miss Americana
Taylor Swift em cena do documentário 'Miss Americana' - Divulgação/Netflix

“Miss Americana”, feito pela Netflix, segue a cartilha de documentários chapa-branca sobre astros da música pop contemporânea que têm tomado o streaming nos últimos anos. Realizados em parceria entre plataforma e artista, esses filmes são vendidos como obras reveladoras, por oferecerem cenas exclusivas de bastidores, mas a maioria acaba omitindo ou tratando de maneira superficial questões fundamentais que envolvem os artistas.

Entre as estrelas com filmes desse tipo em plataformas de streaming estão de Lady Gaga a Anitta, de Maluma a Jonas Brothers, de Keith Richards a Travis Scott. Swift e Justin Bieber são os mais novos nesta lista.

“Miss Americana”, dirigido por Lana Wilson, acompanha Swift enquanto ela vai de estrela mirim do country e queridinha da América ao “cancelamento”, quando ela é acusada de ser mentirosa, de estar alinhada a conservadores e de ter construído a carreira bancando a vítima. Essa virada acontece em 2016, quando Swift não tomou lado na conturbada eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.

No mesmo ano, ela teve uma ligação com Kim Kardashian —mulher de seu desafeto, Kanye West— vazada. A cantora aparece dando permissão para que o rapper falasse dela em sua polêmica música “Famous”. Swift, que publicamente havia negado o contato, foi pega na mentira quando Kardashian divulgou a gravação.

“Miss Americana” até recupera a polêmica, mas Swift não explica por que mentiu sobre a ligação. O longa trata do tema com manchetes de reportagens e enfoca a recuperação da imagem pública da cantora.

O documentário, na verdade, parece um pedido de desculpas, em que Swift quebra o silêncio em relação à política e assume a responsabilidade de “parar o fascismo” —nas palavras dela— enquanto apoia publicamente dois candidatos democratas nas eleições de 2018.

Outro caso polêmico envolvendo Swift nem sequer é mencionado em “Miss Americana”: a briga dela com Scooter Braun. Ele é o empresário cujo selo, Ithaca Holdings, comprou a gravadora que lançou todos os discos da cantora até “Lover”, de 2019, e a fez considerar regravar o próprio catálogo.

“Meu legado está prestes a ficar na mão de alguém que tentou arruiná-lo”, já disse a cantora, que acusou o empresário de Ariana Grande e Kanye West de bullying e disse ter sido manipulada por ele.

Braun, entretanto, é a segunda pessoa que aparece na tela na mais recente série documental de Justin Bieber, lançada no YouTube. Aparentemente, há uma razão para que o empresário apareça com destaque em um filme e esteja sumido do outro —no caso de Swift, é um desafeto; no caso de Bieber, um amigo.

“Seasons”, a série do cantor canadense, vem em um momento propício. Há cinco anos, ele lançou seu último álbum de inéditas, “Purpose”, uma evolução do pop soul açucarado que marcou o anos de estrelato adolescente de Bieber.

No meio tempo, o cantor viveu um relacionamento conturbado com Selena Gomez, passou a frequentar a igreja e se casou com Hailey Baldwin. Todos esses acontecimentos são temas periféricos nos episódios da série, que foca a volta de Bieber ao trabalho, recheado de cenas em estúdio.

“Voando Alto”, documentário da Netflix sobre Travis Scott que saiu no ano passado, acompanha o rapper enquanto ele cria “Astroworld”, seu álbum de 2018. Enquanto algumas cenas ajudam a entender o fluxo de produção do artista, a exploração de sua vida pessoal se limita a tratá-lo como um cara família e compromissado com o trabalho.

A abordagem não é restrita a artistas mais jovens. O documentário da Netflix sobre Keith Richards, lendário guitarrista dos Rolling Stones, é quase uma propaganda do disco solo que ele lançou em 2015.
Sobram falas fartamente conhecidas —sobre como os discos de blues salvaram sua vida— e imagens em alta definição do stone com suas guitarras. Faltam histórias sobre sexo, drogas e a rebeldia roqueira que a figura de Richards representa há décadas.

De maneira geral, esses documentários acabam tendo até roteiro e cenários parecidos. O astro mostra as boas relações com a família e com os produtores, os bastidores de uma apresentação de gala ou gravação de um clipe, o trabalho árduo e o peso da responsabilidade de ser famoso.

Muitos aparecem lidando com problemas de saúde. Swift se emociona ao falar sobre o tempo em que não se alimentava bem para se encaixar em um padrão. Lady Gaga chora com dores da fibromialgia, doença autoimune que a levou a cancelar seu show no Rock in Rio de 2017. Beyoncé trata da dificuldade de realizar um dos espetáculos mais complexos do mundo —como o show no Coachella mostrado no filme— enquanto cuida dos filhos e da saúde.

Na série da Netflix “Vai Anitta”, a cantora é mostrada como ambiciosa e bem-sucedida, mas a grande revelação é que naquele período ela enfrentava uma crise de depressão. O assunto, contudo, também aparece brevemente. “Não é tão aprofundado, mas dou um depoimento explicando um pouquinho do motivo”, ela disse na época.

Assim como “Miss Americana”, esses novos documentários no streaming servem como declarações ou tentativas de mudar a percepção pública sobre os astros. A maioria chega às plataformas coincidindo com o lançamento de um disco.

É o espelho de um processo de controle das próprias narrativas, amplificado pelas redes sociais, em que a comunicação é direta e sem mediação.

Têm sido cada vez mais raras, inclusive, as entrevistas longas e reveladoras de celebridades deste calibre. Até 2019, Swift estava há mais de dois anos sem falar a um veículo da imprensa escrita. E não é muito diferente com Beyoncé ou Justin Bieber.

Mas a chave para a falta de apelo desses documentários está na relação complexa entre produtores e artistas. Para conseguir acesso, cada vez mais restrito, os documentaristas precisam estar completamente reféns de seus sujeitos.

É, na verdade, um paradoxo. Quanto mais perto as câmeras chegam, menos revelador é o conteúdo do filme.

‘Miss Americana’  Disponível na Netflix, acompanha Taylor Swift enquanto ela revê a evolução da própria carreira

‘Seasons’   A série documental, do YouTube Originals, apresenta um Justin Bieber pronto para retomar a carreira, cinco anos depois de seu último disco, após virar evangélico e se casar

‘Voando Alto’  Travis Scott é retratado trabalhando no disco ‘Astroworld’, de 2018. Seus shows e o fluxo em estúdio são os trechos mais interessantes. Da Netflix

‘Homecoming’   Também na Netflix, o registro do show de Beyoncé no Coachella de 2018 é entremeado por cenas documentais em que a cantora mostra as dificuldades de produzir um grande espetáculo

‘Vai Anitta’   Outra da Netflix, mostra Anitta lapidando a carreira internacional com o projeto Check Mate. Ela apresenta sua veia de empresária e fala brevemente sobre depressão

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