Filme sobre utopia que azeda é retrato do Chile atual, afirma diretora

Para Dominga Sotomayor, 'Tarde para Morrer Jovem' toca na ferida que levou chilenos às ruas em 2019

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São Paulo

É num verão modorrento, lânguido, que se passa "Tarde para Morrer Jovem", longa chileno que chega aos cinemas nesta quinta (27).

Montadas em suas bicicletas, as crianças varrem a mata sem qualquer supervisão adulta. Seus pais discutem, entretidos, os rumos da comunidade alternativa que fundaram. Aos adolescentes, sobram os cigarros, tragados um atrás do outro, e o flerte ocasional —hábitos aos quais a protagonista, Sofía (Demian Hernández), se dedica com zelo.

Diretora do filme, Dominga Sotomayor conta que, por trás dessa indolência toda, estava a vontade de "devolver o tempo" aos espectadores.

 

Ela viveu por 20 anos numa comunidade parecida com a do filme, situada a alguns quilômetros de Santiago. Quando chegou lá, tinha quatro anos. "Eram dez casas, e não havia energia elétrica ou cobertura telefônica. Uma aventura", lembra.

Ainda hoje, sua mãe vive no lugarejo —que cresceu, e hoje abriga cerca de 400 casas.

Mas são aquelas imagens nostálgicas, tingidas de sépia, que compõem o terceiro longa da chilena. Co-produzida pelo brasileiro Rodrigo Teixeira, da RT Features, a empreitada rendeu a Sotomayor o troféu de melhor direção no Festival de Locarno em 2018.

Sua câmera é dispersa, e segue humanos e a natureza sem hierarquias, não raro abandonando um personagem para focar um bicho, uma planta. As casas, sem muros, são invadidas pela floresta.

"É um filme sem fronteiras, onde os exteriores se transmutam em interiores, e os adultos podem ser crianças", diz a cineasta. "Meu objetivo era retratar um estado mental coletivo."

A atmosfera, no caso, é de inquietação. Apesar de o roteiro não enunciar isso claramente, muitos críticos enxergaram na trama o ano de 1989, da passagem da ditadura militar para a democracia no Chile.

É, assim, nesse cenário de esperança renovada que os adultos buscam construir uma comunidade idílica, em que reinam as decisões coletivas, o trabalho manual e o contato com a natureza.

Aos poucos, no entanto, essa aspiração desmorona. Uma sequência de furtos põe em xeque a confiança dos moradores uns nos outros, conflitos de classe emergem, e os adolescentes descobrem que nem sempre os adultos são mais responsáveis do que eles. Enquanto isso, queimadas frequentes ameaçam destruir as casinhas de madeira.

Sotomayor compara os impasses que a comunidade enfrenta à trajetória de seu país natal. "Acho que esse é um filme sobre transições em todos os sentidos. Inclusive do Chile, que também é um adolescente. Como os personagens, ele precisa aprender a lidar com o passado e olhar para o futuro."

Ela ainda vê na trama paralelos com os protestos que eclodiram em Santiago no ano passado. Motivados por um aumento nas tarifas de metrô, e depois abraçando pautas como melhores serviços de saúde e educação, eles terminaram com 31 mortes, além de milhares de feridos.

"Algumas pessoas falam que foi premonitório. Porque eu estava sempre falando sobre a ilusão de criar um mundo ideal sem uma base na realidade", diz Sotomayor sobre seu filme, rodado dois anos antes das manifestações.

"A lei, a democracia, eram ilusões. Não estamos numa democracia, mas em outra ditadura, do pior neoliberalismo a que o Chile serviu de laboratório", afirma a cineasta. "Acho que o filme mostra que, apesar de haver uma fantasia de um novo modelo, existe alguma coisa humana nessa base que não funciona. E que, no final, está queimando."

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