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Cinema

Politizado, Festival de Berlim premia filmes sobre pena de morte e aborto

Júri também fez aceno discreto ao controverso 'DAU. Natasha', que tem cenas de sexo explícito e violência não encenada

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Festival de Berlim comemorou seus 70 anos fazendo jus à própria história: elegeu um filme altamente político como o melhor da competição.

O fabuloso “There Is No Evil”, do iraniano Mohammad Rasoulof, foi o último filme a ser exibido e acabou definindo uma disputa que, até então, andava imprevisível, já que o temperamento dos jurados —entre eles o brasileiro Kleber Mendonça Filho—, em geral de índole progressista, não parecia ter a menor afinidade com a do presidente do júri, Jeremy Irons, conhecido por posições mais conservadoras.

Que bom que chegaram a esse acordo. A trama de “There Is No Evil” é dividida em quatro partes, todas explorando questões relativas ao fato de, em um país em que há pena de morte —e é implacável—, um homem precisar matar outro.

O segundo trecho é o melhor. O sujeito encarregado de levar um condenado à forca decide se rebelar. A ideia de assassinar alguém lhe é tão repugnante que, para não precisar fazer isso, ele é capaz até mesmo de matar.

Rasoulof teve seu passaporte confiscado por autoridades do Irã e não foi a Berlim receber o prêmio. Mas sua mensagem há de ganhar o mundo.

A politização também se fez notar no grande prêmio do júri, atribuído ao drama pró-aborto “Never Rarely Sometimes Always”, da americana Eliza Hittman. É um filme contundente, em que a cineasta mostra que a interrupção da gravidez, em seu aspecto moral, é um problema menor do que a falta de dinheiro de quem está certa de que vai tirar o bebê, mas tem dificuldades para fazer isso.

Um dos grandes acertos do júri foi o prêmio de melhor direção ao sul-coreano Hong Sang-soo, por “The Woman Who Ran”. O filme parece um simples registro de conversas entre amigas, mas há bem mais ali sobre as interações sociais e a natureza humana do que o conteúdo das falas muitas vezes explicita. E o diretor é mestre em captar momentos mágicos na singeleza. É um dos maiores cineastas vivos.

O prêmio de melhor ator era o mais fácil de prever. Venceu o italiano Elio Germano, por “Volevo Nascondermi”, dirigido pelo compatriota Giorgio Diritti. Ele interpreta o artista naïf Antonio Ligabue, um sujeito estranho, genioso, que tinha problemas físicos e mentais mas que sonhava em ser um homem comum.

A transformação física de Germano é impressionante, mas também é um trabalho de extrema sensibilidade e invenção. Não havia outro à sua altura em Berlim.

Já a disputa de atuação feminina era mais complicada, mas venceu a alemã Paula Beer, por “Undine”, de Cristian Petzold. Ela está mesmo ótima, como uma mulher que se apaixona intensamente e que tem seu destino ligado à lenda de uma personagem aquática.

O prêmio de roteiro para os irmãos italianos Fabio e Damiano D’Innocenzo, por “Favolacce”, talvez tenha sido o maior equívoco dos jurados. Muitos preferiam para essa categoria a comédia francesa “Effacer l’Historique”, de Benoît Delépine e Gustave Kervern. Mas o filme também saiu premiado, com um troféu especial da 70ª edição da Berlinale.

“Days”, do malaio-taiwanês Tsai Ming-Liang, sobre o encontro entre um homem doente e um garoto de programa, e “First Cow”, da americana Kelly Reichardt, sobre a amizade entre dois caçadores de ouro no Velho Oeste, foram estranhamente ignorados.

Mas ao menos o júri fez um perspicaz aceno ao controverso “DAU. Natasha”, que levou o prêmio de contribuição artística pela fotografia do alemão Jürgen Jürges. O longa dos russos Ilya Khrzhanovski e Jekaterina Oertel é o primeiro do ambicioso projeto DAU, que recriou ambientes da União Soviética do auge do stalinismo em estúdio, com atores vivendo ali como se estivessem naquela época.

Com sexo explícito e violência não encenada, ele põe holofotes sobre questões éticas de comportamento abusivo de diretores em sets de filmagem. Um prêmio mais importante poderia soar como endosso à prática. Mas como o filme é exitoso em termos artísticos, a piscadela teve medida exata.

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