Villa-Lobos, gênio como compositor, tinha o mesmo talento para tocar e reger?

Relatos de Mário de Andrade expõem dúvidas sobre as habilidades do músico como instrumentista e regente

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São Paulo

São famosas as histórias do jovem Villa-Lobos fugindo de casa para frequentar as rodas boêmias de choro, onde tocava seu violão ao lado de Anacleto de Medeiros ou Catulo da Paixão Cearense. Já profissional, podia ser visto nas salas de espera dos cinemas, tocando violoncelo junto a seu amigo Ernesto Nazareth. Sua viúva, Mindinha, menciona uma tarde agradável na qual o compositor passou improvisando ao piano com outro amigo, o grande pianista Arthur Rubinstein.

A partir desses registros e de algumas poucas gravações, os pesquisadores da obra de Villa-Lobos —cujo nascimento se comemora na quinta (5), Dia da Música Clássica no Brasil— têm se perguntado: teria sido o genial compositor igualmente um grande intérprete?

“Como não há nenhum registro de Villa-Lobos tocando o violoncelo, tenho a consciência de que qualquer resposta está fadada a ser mera especulação”, afirma o violoncelista e professor Hugo Pilger, que estudou e gravou a obra para violoncelo de Villa-Lobos.

“No entanto, independente da qualidade do que poderia ser sua performance, posso afirmar que ele conhecia o instrumento numa profundidade pouco comum. Um exemplo é a versão para violoncelo e piano de “O Trenzinho do Caipira”, das Bachianas Brasileiras nº 2, na qual ele lança mão de efeitos que seriam difíceis vir de um compositor sem uma grande intimidade com o instrumento."

Para os artistas que não estavam empregados em estabelecimentos de ensino ou ganhavam a vida de forma regular, valer-se de um instrumento musical era essencial para a sobrevivência, explica a musicóloga Flávia Toni, que analisou as relações entre Villa-Lobos e Mário de Andrade.

Nesse sentido, sabe-se que o violoncelo foi um meio importante de subsistência para ele até 1930. Mário, aliás, lembrando de Villa-Lobos intérprete, não é muito condescendente: “Fazia uma improvisação no violoncelo, completamente ruim e mal executada, ou se arrepelava porque lhe tocavam errado a ‘Lenda do Caboclo’, exemplificando ao piano de maneira horripilante”.

Se não existem registros do compositor ao violoncelo, é possível ouvi-lo, em poucas e raras gravações, tocando violão e piano. “O conceito de virtuose tem aplicações variáveis, não acho que se adeque à proposta de Villa-Lobos como instrumentista”, explica Paulo de Tarso Salles, violonista e um dos maiores especialistas na obra de Villa-Lobos.

“Mas as gravações dele como violonista mostram competência com o instrumento, que ele deve ter tocado muito bem quando jovem. Os depoimentos de músicos como Pixinguinha e Donga me parecem ser um atestado de um excelente nível como violonista acompanhador de choro.”

No LP “Villa-Lobos, o Intérprete”, de 1970, é possível ouvir o compositor empunhando o violão no “Prelúdio nº 1” e nos “Choros nº 1”, em interpretações de fluidez e refinamento. No mesmo disco, há algumas de suas raras interpretações ao piano, a maioria registrada em 1936, em Berlim. Villa-Lobos acompanha a cantora Beate Rosenkreutzer em quatro canções, além de interpretar os “Choros nº 5”, “Alma Brasileira”, “Lenda do Caboclo” e “Polichinelo”.

“Apesar dessas gravações não terem a qualidade de hoje em dia, e isso talvez comprometa a análise, sempre achei que o Villa poderia ter sido um grande pianista”, diz a pianista Karin Fernandes, que ouviu os registros a pedido da Folha. 

“Alguns trechos saem meio embrulhados e às vezes ele esbarrava notas —normal para alguém que não tinha o propósito de ser um pianista. Mas percebe-se que ele tinha total domínio das texturas sonoras que queria valorizar e de quais temas queria destacar, por exemplo.”

Em depoimento, o regente Walter Burle-Marx (1902-1990) afirmou que Villa-Lobos, ensaiando em Chicago na década de 1950, desceu do pódio e executou na harpa um trecho de sua música que o harpista afirmava ser impossível de tocar. O que nos leva a crer que ele tinha enorme facilidade como instrumentista.

No entanto, é improvável que tenha sido um virtuoso em algum instrumento, “caso contrário essa característica teria ficado marcada em seu tempo também pela crítica musical”, afirma Toni.

Em 1930, após retornar de sua segunda temporada em Paris, Villa-Lobos realizou uma série de concertos como regente em São Paulo. Mário de Andrade acompanhou as apresentações e escreveu suas impressões numa série de críticas para o Diário Nacional.

“Estabeleçamos desde logo algumas verdades sobre o genial compositor como regente. Villa-Lobos é um grande regente?”, pergunta ele na segunda resenha. “Um adorador de Villa-Lobos diz logo: é um grande regente. Um ‘inimigo’ responderá com a mesma certeza: é um péssimo regente.”

“Mário de Andrade reconhece que Villa-Lobos não era exatamente um bom regente, mas ele também diz que não tinha notícias de que Villa tivesse tido qualquer problema regendo orquestras fora do Brasil”, afirma o maestro e pesquisador Lutero Rodrigues.

Isso se dava, segundo Rodrigues, porque as orquestras brasileiras tendiam a esperar que o compositor, ao reger, se transformasse num regente profissional. O próprio Mário de Andrade, na mesma série de textos que escreveu, recrimina a postura desrespeitosa dos instrumentistas.

Na Europa, ao contrário, reconhecia-se o valor de ter um compositor importante comandando suas próprias obras. “A prova disso são as gravações que temos do Villa-Lobos regendo. As peças dele não são fáceis e, no entanto, temos gravações fantásticas, como a dos ‘Choros nº 6’, com a Orquestra da Rádio de Berlim.

Outro profundo conhecedor da obra de Villa-Lobos, o pesquisador Manoel Aranha Correia do Lago vai além e diz que é preciso valorizar o artista enquanto regente de obras de terceiros.

“Em 1930, em São Paulo, ele faz uma grande programação de música moderna, regendo Florent Schmitt, Darius Milhaud etc.”, explica. “No Rio, ele fará grandes obras de Bach, Beethoven, Palestrina e Carlos Gomes. Isso se prolonga pelos concertos internacionais na década de 1950. Ou seja, é uma atividade de regência extensa, e não apenas um regente de si próprio. Acho que o papel de Villa-Lobos como regente ainda é subestimado.”

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