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'A França perdeu o barco quanto ao MeToo', diz atriz Adèle Haenel

Artista foi a primeira no país a falar sobre abusos na indústria cinematográfica

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Elian Peltier
Paris | The New York Times

Quando declarou, no final do ano passado, que havia sofrido abuso por um diretor de cinema quando ainda era criança,  Adèle Haenel se tornou a primeira atriz francesa proeminente a falar publicamente sobre abusos na indústria cinematográfica de seu país. Àquela altura, o movimento MeToo já estava em curso há dois anos.

Famílias discutiam sobre sua história nas mesas de jantar. Colegas discutiam no trabalho. Brigitte Macron, a primeira-dama da França, disse que Haenel, de 31 anos, merecia "grande respeito”.

Em uma entrevista recente ao jornal The New York Times –a primeira de Haenel desde as acusações, feitas em novembro–, a atriz instou o governo do presidente Emmanuel Macron a acelerar seus esforços de combate à violência contra a mulher.

“O sistema judicial precisa tratar melhor as vítimas da violência sexual, em todos os níveis”, disse ela.

O cineasta Christopher Ruggia, a quem Haenel acusou de assédio sexual e de contatos inapropriados que, segundo ela, começaram quando a atriz tinha 12 anos, negou as acusações, por meio de seus advogados.

Em janeiro, ele foi acusado de agressão sexual contra uma vítima de menos de 15 anos de idade, e um inquérito está em curso.

Ainda que Haenel tenha mantido o silêncio desde que fez suas acusações, histórias semelhantes se seguiram, entre as quais uma acusação pela fotógrafa Valentine Monnier de que o cineasta Roman Polanski a teria estuprado em 1975, quando ela tinha 18 anos.

Polanski nega a acusação, embora tivesse se admitido culpado anteriormente por fazer sexo com uma menina de 13 nos de idade, nos Estados Unidos. Outras mulheres se pronunciaram, depois que Haenel o fez, expondo abusos nas esferas da literatura e do esporte.

Poucas semanas antes do lançamento de seu mais recente filme, “Retrato de uma Jovem em Chamas”, nos Estados Unidos, Haenel concedeu uma entrevista ao jornal The New York Times em Paris. A entrevista foi seguida por uma conversa telefônica, e a transcrição foi editada por motivos de espaço e clareza.

Você contou sua história três meses atrás e não se pronunciou publicamente desde então. Como seu depoimento foi recebido? Minha história foi como o último grama em um experimento químico, aquela gota que faz tudo emergir. Ecoou porque a sociedade francesa havia passado por um processo de reflexão profunda sobre o MeToo.

Sou parte do mundo do cinema, mas hoje quero ouvir de mulheres de outras esferas, na academia, em organizações. O número enorme de cartas manuscritas, de mensagens e emails –de mulheres e também de homens– que se comoveram com a minha história também me fez compreender que faltavam histórias na mídia da França sobre os sobreviventes de violência sexual.

Como você descreveria o desenrolar do MeToo na França? Há um paradoxo. A França é um dos países nos quais o movimento é acompanhado mais de perto na mídia social, mas, da perspectiva política e nas esferas culturais, perdeu o barco completamente. Muitos artistas confundiram, ou buscaram confundir, a delimitação entre comportamento sexual e abuso. O debate terminou centrado na questão da “liberdade para incomodar” dos homens e no suposto puritanismo das feministas. Mas abuso sexual é abuso, e não comportamento libertino.

No entanto, as pessoas estão falando sobre o assunto, e o MeToo deixou sua marca. A França está fervilhando de questões a respeito.

Como isso a ajudou a contar sua história? Ajudou-me a compreender que a história não era apenas pessoal, mas a de muitas mulheres e crianças, e todos temos de arcar com ela. Mas eu não me sentia preparada para revelá-la, quando o MeToo emergiu. Precisei de muito tempo para fazer a jornada pessoal que me permitiu me ver como vítima. Acho igualmente que não me movi mais rápido do que a sociedade francesa.

Atriz francesa Adele Haenel na cerimônia de 2020 do Cesar
Atriz francesa Adele Haenel na cerimônia de 2020 do Cesar - Bertrand Guay/AFP

Alguns políticos franceses a criticaram por revelar sua história na imprensa, sem inicialmente apresentar acusações judiciais. Temos um sistema de Justiça que não faz da violência contra a mulher uma prioridade. Algumas figuras públicas expressaram sua surpresa, mas será que elas sabem o que é necessário, hoje, para que uma mulher enfrente o sistema judicial francês? Alguém leva em conta os imensos desafios que existem no caminho de uma mulher vítima de violência sexual?

Meu caso agora está sendo tratado de uma maneira ideal, com policiais treinados e investigadores atentos e bem intencionados. Gostaria que todas as sobreviventes tivessem o mesmo tratamento.

Algumas mulheres se queixaram por seus casos não terem recebido o mesmo tratamento. Nos termos da lei francesa, o estupro é um ato cometido com violência, de surpresa ou com imposição. A definição é centrada no método usado pelo autor do abuso, e não na ausência de consentimento por parte da vítima… Mas e se durante o ataque uma vítima estiver completamente em choque? Como buscar justiça?

Também temos de acreditar em todas as mulheres que se pronunciam. Sempre que uma mulher tem menos poder que um homem, a suspeita é a de que ela esteja buscando vingança. Nada temos a ganhar por nos apresentarmos como vítimas, e as consequências para nossas vidas pessoais são muito negativas.

O presidente Emmanuel Macron definiu a sociedade francesa como 'doente de sexismo' e se comprometeu a combater a violência contra a mulher e promover a igualdade de gêneros. Como você encara as ações do governo nesse sentido? Não existem verbas suficientes para mudar a situação, e temos em nosso atual governo um deputado que foi acusado de abuso por diferentes mulheres. Mantê-lo no posto envia um sinal de que os esforços do governo não são muito sérios.

A reação lerda do governo ao fenômeno MeToo leva a pensar que o Estado tolera certa quantidade de violência contra a mulher. Isso continua a ser aceitável, em alguma medida.

Muitas conversas recentes sobre a violência sexual no mundo do cinema da França têm por foco Roman Polanski por seu mais recente filme, 'O Oficial e o Espião'. Você também foi indicada ao prêmio. Premiar Polanski é cuspir na cara de todas as suas vítimas. Significa que estuprar mulheres não é tão ruim.

Quando “O Oficial e o Espião” foi lançado, ouvimos protestos contra a censura. Não é censura –é escolher o que uma pessoa deseja assistir. E os homens brancos, velhos e ricos podem ficar tranquilos; eles são donos de todos os canais de comunicação.

Não, a verdadeira censura no cinema francês é que algumas pessoas sofrem de invisibilidade. Onde estão as pessoas não brancas? Os diretores não brancos? Há exceções, como Ladj Ly, cujo filme foi um enorme sucesso, ou Mati Diop, mas isso não reflete a realidade do mundo do cinema, de modo algum. Eles continuam a ser minoria. Por enquanto, a maioria das histórias tomam o ponto de vista clássico, branco, masculino e heterossexual.

Mas 'Retrato de uma Jovem em Chamas' oferece uma visão diferente do amor e da interação humana. Não aplicamos a visão tradicional, que é a de “se apaixonar sem saber por quê”. Isso em geral inclui dominação e relações de poder desiguais, muitas vezes consideradas como um motor para o erotismo O filme se liberta disso. Oferecemos algo que política e artisticamente nos torna menos submissas. É uma nova versão de desejo, uma mistura de excitações intelectuais, carnais e inventivas.

Quais são seus planos agora? Foram afetados pelo impacto de sua história? É cedo para dizer, mas na verdade não importa se isso prejudicar minha carreira. Creio que fiz algo de bom pelo mundo, algo que me faz sentir idônea. Vou fazer uma peça no final do ano, mas ainda não sei como o acontecido afetou a maneira pela qual as pessoas me veem.

Ando a pé em Paris –não vivo em uma bolha. Às vezes pessoas me agradecem por ter me pronunciado, quando me veem na rua. Quando as pessoas me agradecem, fico comovida, porque meu objetivo era ajudar. Fico orgulhosa e alegre.

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