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A moda também tem o poder de educar sobre o feminismo, diz diretora criativa da Dior

Uma das mulheres mais poderosas da indústria fashion, a italiana Maria Grazia Chiuri compara machismo aos estragos da crise climática

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Paris

As principais criações da moda feminina desde o fim da Segunda Guerra comungam da mesma característica incômoda. Todas elas, invariavelmente, foram criadas, apropriadas ou creditadas a homens.

Do bíquini de Louis Réard ao “Le Smoking” de Yves Saint Laurent, da minissaia de Mary Quant, que ganhou um “pai” quando André Courrèges a popularizou, ao vermelho Valentino, o olhar masculino pautou o que se entende por sexy, correto, doce e vulgar para elas.

Tudo isso até uma italiana chegar, bradando hinos feministas, ocupando espaços e apontando o dedo para uma plateia fashionista que, já acusava Zuzu Angel na década de 1970, reservava às mulheres a alcunha de costureiras e, aos homens, a de estilistas.

Maria Grazia Chiuri não se tornou a voz mais potente da costura falando baixo. Quando fez seu primeiro desfile para a Christian Dior, há quatro anos, e se tornou a primeira mulher a assumir a casa dita “mais feminina” da moda, picotou o legado do homem que dá nome à marca, estrangulou os arroubos oníricos de John Galliano e exorcizou o minimalismo do antecessor, Raf Simons.

A estilista italiana Maria Grazia Chiuri, que comanda a Dior, no cenário do último desfile da grife francesa em Paris 
A estilista italiana Maria Grazia Chiuri, que comanda a Dior, no cenário do último desfile da grife francesa em Paris  - Laura Marie Cieplik/Divulgação 
O sucesso comercial retumbante, que fez o chefe, o empresário Bernard Arnault, do grupo LVMH, correr para comprar o resto das ações da maison e se tornar o único dono da grife, em 2017, se deve em parte à entrada de vozes femininas, propiciada por ela, no seio da Dior.

Primeiro foi a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que viu sua frase “todos nós deveríamos ser feministas” ganhar o mundo estampado num look da marca. Depois, vieram outras, como a artista visual Tomaso Binga e, no último desfile em Paris, há poucos dias, o coletivo Claire Fontaine.

“Por muitos anos, as mulheres tiveram a voz abafada. Se pensarmos no pré-Guerra, quem ditava a moda eram elas. Havia Vionnet, Lanvin, Chanel. Depois desses meus três anos e meio na Dior, vejo meu trabalho como um veículo para que outras mulheres se expressem sem interferência”, diz Chiuri, em entrevista na sede da grife em Paris durante os desfiles de outono-inverno.

Não foi à toa que a atriz Natalie Portman escolheu a estilista para assinar seu look para o Oscar deste ano. No conjunto de vestido e capa, estavam costurados os nomes das diretoras esnobadas pelo prêmio.

“Ela conhece os problemas da indústria do cinema, e eu, os da moda. Ela é uma mulher muito específica, sabe o que quer e seu papel”, diz a estilista. “Somos próximas desde que comecei na Dior, então, honestamente, apenas bordei o que ela queria dizer.”

Não é coincidência que, um dia depois de o produtor Harvey Weinstein ter sido condenado por abusos cometidos contra atrizes, seu desfile em Paris tenha exposto letreiros com mensagens contra o patriarcado, comparado no cenário à crise climática do planeta.

“Não foi planejado, não faríamos aquilo de um dia para o outro. Patriarcado é um problema que afeta todas as relações. Assim como a sororidade, ele não diz respeito só às mulheres, porque é uma questão de humanidade. A moda não costuma falar disso porque é narcisista. Nosso trabalho não é mais sobre impor uma silhueta, mas sobre cuidar das pessoas, dar opções a elas”, afirma.

Crítica mordaz do sistema da moda, ela desafia a história da marca para a qual desenha. Se à Christian Dior é creditado o retorno do glamour depois do esfacelamento da Europa do pós-Guerra, quando a marca resgatou a saia estruturada, a cintura marcada e os ombros arredondados, o chamado “new look”, a Chiuri pode ser creditado o retorno do poder de escolha da mulher.

Escolhas como se ela quer apertar a cintura combinando jeans à jaqueta, se prefere mostrar a lingerie por baixo da roupa ou se prefere combinar saia na altura do joelho, uma invenção da marca, com minitop, só para lembrar propostas de suas passarelas recentes.

“O que ele fez foi um trabalho de arquitetura, de construção, mas, provavelmente, Dior não tinha consciência do corpo da mulher nessa construção. Acho que vim para quebrar essa silhueta”, diz Chiuri.

“Além do mais, não consigo imaginar que as mulheres queiram usar uma única ideia o tempo todo. Como mulher, sei que isso não é possível.”

Nem todo mundo, claro, aceitou bem a ideia de início. Para além das críticas sobre supostamente ter transformado o feminismo em produto pop —“aceito as críticas, mas, veja o Instagram, todos viramos produtos vendidos ali; alguns jovens, aliás, estão perdendo a própria individualidade se expondo”—, ela também enfrentou resistência por ter dado verniz casual à casa de alta-costura.

“Tenho muito respeito pela história da Dior. Ela é uma instituição. Mas não posso achar que ela é o Coliseu, intocável, do contrário, estaria transformando a grife num museu. E a Dior não é um museu. A verdade é que o sistema da moda é nostálgico demais.”

Para entender a cabeça de Chiuri e o impacto que ela representa nesse sistema não basta olhar só para as suas roupas, mas também para a sua história pessoal.

Filha do patriarcado e do conservadorismo italiano, ela cresceu assistindo às missas de domingo e, findada a reza, ia com a avó ao cemitério deixar flores ao avô. Brigou para estudar moda ainda na década de 1970, usar minissaia e ousar, por exemplo, ser a favor do aborto.

“Nasci na lógica de que meninos tinham de usar azul quando nasciam, e meninas, rosa. Então, enfrentei problemas, porque nunca quis ser uma menininha”, diz, ouvindo do repórter que as cores e os tamanhos da roupa são temas mais do que atuais num Brasil no qual o número de feminicídios só aumenta. Moda, está posto, virou um problema de Estado.

“Mas não é só no Brasil que isso acontece. Na Itália, agora, a pessoa mais moderna parece ser o papa Francisco, de quem eu gosto muito. Lá, uma mulher que usa pouca roupa também está correndo perigo.”

Na visão de Chiuri, só a educação pode mudar o cenário. “Não há alternativa senão educar nossos filhos e filhas, parar de reproduzir formas de criação do passado. Se alguém vê uma mulher de minissaia e acredita que aquilo é errado, é porque não a enxerga como pessoa, mas como alguém que não significa nada”, diz, no tom direto que tornou sua moda reconhecida.

“Meu trabalho é trazer isso à tona. A moda é tão pop e fala tão diretamente sobre a vida das pessoas que também tem o poder de educar.”

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